Cloroquina no SUS x Covid-19 – Nota CRFRS

Evidências científicas sobre o potencial uso da cloroquina para profilaxia e tratamento da Covid-19 estão sendo geradas e publicadas [1][2][3][4].

No Brasil, existem medicamentos registrados na Anvisa contendo cloroquina, com as seguintes indicações de uso aprovadas[5]:

– afecções reumáticas e dermatológicas (reumatismo e problemas de pele);

– artrite reumatoide (inflamação crônica das articulações);

– artrite reumatoide juvenil (em crianças);

– lúpus eritematoso sistêmico (doença multissistêmica);

– lúpus eritematoso discoide (lúpus eritematodo da pele);

– condições dermatológicas (problemas de pele) provocadas ou agravadas pela luz solar;

– Malária (doença causada por protozoários): tratamento das crises agudas e tratamento supressivo de malária por Plasmodium vivax, P. ovale, P. malariae e cepas (linhagens) sensíveis de P. falciparum (protozoários causadores de malária). Tratamento radical da malária provocada por cepas sensíveis de P. falciparum.

Um dos critérios utilizados pela Anvisa para aceite da evidência para registro do medicamento é que ela decorra de ensaio clínico registrado na Agência e demonstre que a segurança e eficácia do produto pesquisado seja superior à do placebo.

Sendo assim, é possível que tecnologia já registrada na Anvisa seja utilizada para finalidade diversa daquela descrita no processo administrativo de registro do medicamento. Este uso off label decorre principalmente de evidências obtidas posteriormente ao registro; quando esta evidência adquire robustez metodológica suficiente, ou seja, quando possuir qualidade suficiente, o uso off label pode ser transformado em indicação de uso aprovada pela Anvisa, desde que o detentor do registro solicite à Anvisa esta incorporação ao medicamento já registrado.

Assim sendo, é possível que um medicamento registrado no Brasil possua uso clínico baseado em indicação de uso off label, o que não será problema se houver evidência científica que dê suporte clínico, com segurança e eficácia suficientes. Portanto, o critério utilizado não compara a tecnologia com outra já disponível no país.

No SUS, no entanto, o uso de uma tecnologia (no caso, o medicamento) registrada na Anvisa não é critério suficiente para sua incorporação e utilização sistemática. É necessário que esta tecnologia seja superior em relação àquela já utilizada, e esta superioridade considera fatores como eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde considerado.

Para que a incorporação de tecnologia no SUS ocorra nessa lógica, foi criada a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), em 2011[6], para assessorar o Ministério da Saúde na incorporação, na exclusão ou na alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como na constituição ou na alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica.

Em março de 2020, a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde[7] aprovou emergencialmente o uso da cloroquina no SUS, a critério médico e sem que outras medidas de suporte fossem preteridas, apenas como terapia adjuvante no tratamento de formas graves de Covid-19 em pacientes hospitalizados (com dispneia, frequência respiratória ≥ 30/min, SpO2 ≤ 93%, PaO2/FiO2 < 300, e/ou infiltração pulmonar > 50% dentro das 24 a 48h), inclusive críticos (falência respiratória, choque séptico e/ou disfunção de múltiplos órgãos). Como este uso não foi aprovado pela Anvisa no momento do registro da tecnologia, é um uso off label.

Neste documento, o Ministério da Saúde alerta que os eventos adversos relatados ao longo prazo devido ao uso da cloroquina incluem retinopatia e distúrbios cardiovasculares. Embora o uso de cloroquina possa ser considerado seguro, sua janela terapêutica (margem entre a dose terapêutica e dose tóxica) é estreita. Portanto, o seu uso deve estar sujeito a regras estritas. Se utilizada em associação com antimicrobiano, esta opção terapêutica ficará a critério da equipe médica do hospital, de acordo com as recomendações da comissão de infecção hospitalar local.

Em maio de 2020, o Ministério da Saúde atualizou este protocolo, estendendo a utilização da cloroquina no SUS, orientando os médicos a prescreverem o medicamento em pacientes comunitários diagnosticados com Covid-19, e que possuam sinais e sintomas leves a moderados, à critério médico, mediante consentimento livre e esclarecido do paciente, mesmo considerando não haver evidências de qualidade robustas que justifiquem seu uso para tratamento da doença , especialmente se comparado a tratamentos já em uso. Portanto, o uso da cloroquina para tratamento da Covid-19 deveria estar restrito às situações clínicas com alguma evidência de qualidade para suportar esta recomendação, considerando aspectos de eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade deste fármaco em relação às terapias então em uso.

A utilização da cloroquina na profilaxia e/ou no tratamento da Covid-19 em paciente comunitário, ou  hospitalizado não grave, requer a existência de evidências de qualidade que suportem estas indicações, como estudos de coorte, ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas bem delineadas metodologicamente.

Mesmo que o país esteja em emergência sanitária, a lei federal nº 13979/2020 estabelece que apenas o Ministro da Saúde ou o gestor local da saúde podem determinação de realização compulsória de tratamentos médicos específicos, como o uso off label de cloroquina durante a pandemia da Covid-19, desde que:

– Esta determinação se baseie em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde;

– Esta determinação se limite no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública durante a pandemia;

– O paciente receba permanentemente informação sobre o seu estado de saúde;

– A família receba assistência necessária;

– O paciente receba o tratamento gratuitamente;

– Haja o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas.

Esta incorporação necessita atender aos critérios técnicos estabelecidos pela lei federal nº 13979/2020 e pela lei federal nº 8080/1990, alterada pela lei federal 12401/2011, que criou a Conitec, dentre outras providências.

O gestor da saúde necessita assessoramento técnico para esta tomada de decisão, e a Conitec, no âmbito federal, e as Comissões de Farmácia e Terapêutica, no âmbito estadual e local, são locais institucionalizados com profissionais da saúde capacitados para avaliação de tecnologias, e que devem ser utilizados principalmente durante a emergência sanitária pela qual passamos.

Este assessoramento técnico é primordial para a oferta de tecnologia inovadora no SUS, pois demandará financiamento público para custear a aquisição, logística, dispensação e utilização racional do fármaco.

E para justificar este financiamento em relação à cloroquina, o gestor local da saúde deverá, por exemplo, manter esta tecnologia incorporada disponível ao paciente; possuir farmacêutico em quantidade suficiente na rede de atenção à saúde para realizar a dispensação9, a assistência farmacêutica e a farmácia clínica10; e deverá garantir na prática a superioridade da terapêutica incorporada em relação à existente.

A não observação destes pressupostos pode contribuir no aumento da judicialização na saúde, seja pela indisponibilidade da tecnologia incorporada, seja pela não garantia da assistência profissional ao paciente e/ou à família, seja pelo mau uso do dinheiro público.

Portanto, a incorporação de cloroquina para uso off label no SUS, como no tratamento comunitário e hospitalar não grave da Covid-19 requer muita responsabilidade sanitária e social do Ministro da Saúde e/ou do gestor local da saúde, pois necessita estar ancorada pela análise crítica da literatura científica, a fim de que a decisão seja baseada na melhor evidência disponível.

Nesse sentido, é necessário que o gestor da saúde se assessore tecnicamente com as instâncias já legitimadas no SUS, como a Conitec e as Comissões de Farmácia e Terapêutica, pois toda tecnologia incorporada lida com recursos públicos escassos, com cumprimento de normas legais e, principalmente com vidas humanas.

[1] Centro Cochrane Brasil, em https://brazil.cochrane.org/

[2] Pubmed, https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed

[3] Epistemonikos, https://www.epistemonikos.org/

[4] Anvisa, http://portal.anvisa.gov.br/consulta-de-ensaios-clinicos-autorizados .

[5] Nota Técnica Anvisa sobre Cloroquina e Hidroxicloroquina, http://portal.anvisa.gov.br/documents/219201/4340788/Nota+Te%C2%B4cnica+sobre+Cloroquina+e+Hidroxicloroquina.pdf/659d0105-60cf-4cab-b80a-fa0e29e2e799

[6] Lei federal nº 12.401 de 28 de abril de 2011.

[7] NOTA INFORMATIVA Nº 5/2020-DAF/SCTIE/MS, 27/03/2020, https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/30/MS—0014167392—Nota-Informativa.pdf

[8] ORIENTAÇÕES DO MINISTÉRIO DA SAÚDE PARA MANUSEIO MEDICAMENTOSO PRECOCE DE PACIENTES COM DIAGNÓSTICO DA COVID-19, 20/05/2020, em https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/20/orientacoes-manuseio-medicamentoso-covid19.pdf

[9] Lei federal nº 5991/1973

[10] Lei federal 13021/2014

CRFRS, https://www.crfrs.org.br/noticias/cloroquina-no-sus-x-covid-19