Falha no monitoramento de tendências pode custar caro aos estados na luta contra o coronavírus. Entrevista especial com Alcides Silva de Miranda
Igor Natusch
O Brasil já vive efeitos terríveis, causados pelo contágio crescente do novo coronavírus – e a tendência é de muito mais pressão sobre o sistema de saúde brasileiro nos próximos meses. Diante dessa perspectiva, a atuação dos entes públicos está longe de ser tranquilizadora. A coordenação de ações entre governo federal, estados e municípios é quase inexistente, os insumos necessários chegam em ritmo lento e o baixo nível de testagem nos deixa no escuro quanto aos futuros epicentros de contágio. Para piorar ainda mais as coisas, falta suporte aos trabalhadores e trabalhadoras na linha de frente, que colocam suas próprias vidas e as de seus familiares em risco tentando diminuir a dimensão da tragédia trazida pela Covid-19.
Para melhor delimitar esse cenário e tentar pensar alternativas para solucionar ao menos parte desses problemas, o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT conversou com Alcides da Silva Miranda, Doutor em Saúde Coletiva, especialista em Medicina de Família e Comunidade e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em sua visão, a reação ineficiente do Brasil à chegada da pandemia reflete um processo anterior de precarização do sistema público de saúde e a centralização dos esforços de coordenação em torno do SUS (que passa, também, pelo estabelecimento de políticas específicas para os profissionais de saúde) é fundamental para que o país consiga minimizar esse déficit e salvar o maior número possível de vidas.
DMT – Como estava a situação da saúde brasileira – e em especial da saúde pública – antes da chegada do novo coronavírus ao país? Levando em conta as políticas aplicadas recentemente ao setor, como o Brasil se encontrava no período imediatamente anterior a essa crise?
Alcides Silva de Miranda – Há dois momentos que são distinguíveis em relação ao Sistema Único de Saúde. O sistema de saúde é uma cunha de uma estrutura de bem estar social, de acesso universal, que passou um longo período de subfinanciamento. Os recursos que eram destinados não apenas a investimentos, mas também ao custeio desse sistema, eram insuficientes. E isso fez com que a ampliação desse sistema se desse de uma forma que não atendeu efetivamente às necessidades da população. Mesmo assim, algumas políticas começam a se evidenciar como focos de investimento, que é o caso da urgência e emergência. Durante o governo dos presidentes Lula e Dilma, houve uma ênfase na Política Nacional de Urgência e Emergência, a criação do SAMU, das UPAs e de toda uma rede de assistência pré-hospitalar, hospitalar e básica. Isso melhorou um pouco o número de equipamentos e leitos de UTI, mas é algo que ainda está muito aquém da real necessidade de volume e de distribuição de recursos.
Depois do golpe de 2016, a partir do governo de Michel Temer, o SUS passa por uma outra fase, que deixa de ser de sub-financiamento e passa a ser de desfinanciamento. Ou seja, ele começa a perder recursos, em especial com a Emenda Constitucional 95, que estabelece aquele teto de gastos. Isso acarretou uma dificuldade muito maior para a montagem de uma estrutura de urgência e emergência, de suporte a complicações clínicas – e aí eu me refiro não somente às Unidades de Terapia Intensiva, mas a todo o aporte tecnológico que está no entorno desse atendimento. E aí, quando a epidemia chega, ela nos pega em um momento em que não temos uma distribuição adequada de equipamentos, de equipe profissional, de estrutura e logística para dar conta de um desafio desses.
Nesse cenário, a desigualdade se amplia – porque a gente conhece a desigualdade social, a desigualdade de acesso, mas há também uma desigualdade de distribuição dos recursos tecnológicos. Quando a epidemia chega, ela nos pega, como no dito popular, de calças curtas, e aí qual deveria ser a medida tomada? Nós precisaríamos estabelecer rapidamente uma governança entre os entes federativos – municípios, estados e União – sob uma unidade coordenada. Esse protagonismo deveria ter sido tomado pelo Ministério da Saúde desde janeiro, quando já existiam indícios e até mesmo algumas projeções de que, embora esse vírus fosse desconhecido, a transmissibilidade dele era muito alta. Qualquer manual de estratégia nos diz o seguinte: se eu conheço pouco um risco, eu tenho que me preparar para o pior. Isso é imprescindível. Só que o Ministério da Saúde demorou para tomar medidas de coordenação e, quando começou a tomá-las, muitos municípios e estados já tinham se antecipado. Criou-se uma situação múltipla, de várias iniciativas governamentais, mas não coordenadas. Aí o ministro tentou, à época, estabelecer um diálogo com esses entes, mas começou a sofrer um boicote do próprio Presidente da República.
E agora, para piorar a situação, o novo ministro (Nelson Teich) parece que está mais perdido do que cego em tiroteio. Ele está mais preocupado em dar resposta para as loucuras do Presidente da República e tem afirmado nas últimas semanas que não dispõe de informações suficientes para tomar iniciativas. Aí reforço: se eu não tenho informações que me subsidiem, em tenho que lidar com a perspectiva do pior cenário. Entretanto, o ministro diz que não tem as informações e, ainda assim, segue na enrolation. Repete sempre o mesmo discurso, com algumas questões pontuais, mas nunca apresenta uma estratégia de coordenação. Isso é muito preocupante.
DMT – Vou aproveitar que o senhor mencionou essa situação política e pedir uma análise sua a respeito da atuação do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. Ele acabou saindo do governo com uma imagem majoritariamente positiva, como se fosse o cientista em meio aos fanáticos e obscurantistas. O senhor acredita que essa imagem reflete, de fato, o conjunto da atuação de Mandetta em seu período à frente do ministério?
Alcides Silva de Miranda – Em termos. O Mandetta já foi secretário municipal de saúde em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e tinha uma vivência em relação ao SUS. Mas, quando entrou no Ministério da Saúde, ele e parte da equipe dirigente fizeram um trabalho de desmonte do SUS. No ano passado, as medidas adotadas pelo ministro Mandetta, inclusive no que se refere à Política Nacional de Atenção Básica, uma estratégia importantíssima para a estruturação do SUS, foram de privatização, terceirização e desmonte.
No momento em que a crise chegou, e aí acho que este é o ponto positivo com relação ao ministro Mandetta, ele percebeu rapidamente que a única alternativa para dar uma resposta em tempo hábil, inclusive mitigadora em relação ao impacto que isso tudo vai ter na economia, seria o SUS. Então, o que ele fez? Colocou o colete do SUS e foi defender a proposta da Organização Mundial da Saúde. E aí ele vira um personagem estranho, porque a lógica do núcleo duro do governo Bolsonaro é tão retrógrada, tão fascista, que o ministro começa a aparecer meio que como um iluminista no meio das trevas. Ele foi firme em alguns posicionamentos e eu acho que essa firmeza dele em não ceder ao que o presidente queria salvou muitas vidas nas últimas semanas. Eu acho que essa é a parte positiva. E a maneira como ele lidou com a comunicação também foi importante, porque ele soube se comunicar, em especial com a chamada classe média. Aqueles colóquios de final de tarde, as pessoas ouvindo ficaram bem agradadas com ele – e é claro que essas pessoas muitas vezes não têm como contextualizar o que aconteceu no ano passado, que parte do nosso despreparo de agora tem a ver com a própria atuação ministerial no ano passado, da qual esse ministro foi o condutor. Mas parece que estamos condenados a ficar buscando salvadores da pátria, não é? E, naquele momento, ele representou esse papel de oposição ao obscurantismo.
DMT – E o novo ministro (Nelson Teich)?
Alcides Silva de Miranda – O novo ministro, nem isso. Eu trabalho com gestão estratégica em saúde, e quando eu vi o perfil do ministro, de que era empresário da saúde e consultor de empresas em saúde, eu pensei “bom, o cara é um privatista, não tem experiência em administração pública mas, ao menos, deve ter visão estratégica”. Depois que vi duas ou três entrevistas, fiquei decepcionado. Ele não tem sequer visão estratégica. O discurso dele é vago, você não consegue ver qual é o foco. Dá para perceber que ele não tem segurança nenhuma do que deve ser feito e aí ele acende uma vela para Deus e outra para o diabo: quer agradar o Presidente da República, quer manter o mínimo de contenção junto à comunidade científica, e ele não está conseguindo fazer nenhuma das duas coisas, infelizmente. Não está conseguindo sequer se comunicar, seja com a população, seja no trabalho de coordenação com as equipes estaduais e municipais de saúde.
Isso preocupa muito, porque nós temos casos de complicação do coronavírus que vão requerer atenção especializada, mas temos todos os outros casos que vão continuar acontecendo. Os infartos vão continuar acontecendo. As complicações de câncer, de AVC e todas as outras complicações vão continuar acontecendo. E aí nós precisamos de suporte, de leitos extras, mas o mais importante disso tudo: nós precisamos que o SUS atue de acordo, ou seja, que ele seja efetivamente um Sistema Único de Saúde neste momento. É toda uma logística que tem que ser pensada. Mas ela não pode ser pensada de forma isolada, no gabinete do Ministério da Saúde. Não é chamar um general especialista em logística (Eduardo Pazuello) para resolver o que vai ser feito. Isso requer coordenação, não verticalidade.
DMT – O cenário, então, é de um ministro sem visão estratégica, de decisões das esferas estadual e municipal colidindo com as do governo federal… Na medida em que essa falta de coordenação no enfrentamento da pandemia continue, o que se pode esperar das próximas semanas?
Alcides Silva de Miranda – Há um mês (a entrevista aconteceu no final de abril), eu tinha projetado quatro cenários. Não apenas eu, claro, mas muitas pessoas têm analisado, e algumas buscaram inclusive dimensionar em termos de número de casos e de óbitos. Mas o pior cenário possível era o cenário Bolsonaro: não fazer nada, deixar a epidemia agir por conta própria. Muitas, muitas pessoas morreriam, e uma parte significativa da população ficaria imunizada. Uma situação catastrófica, com muitas mortes, mas uma curta duração para a epidemia. Há um cenário intermediário para pior, em que não se adota as medidas necessárias em termos de supressões, e aí vamos ter um número muito grande de mortes concentrado em um período de duas a três semanas, o chamado pico, no qual os serviços de saúde vão estar colapsados e não vão dar conta – aquela imagem trágica do médico que vai ter que escolher quem vai morrer, porque não tem leito para todo mundo, que aconteceu na Itália e na Espanha, está acontecendo nos Estados Unidos e que provavelmente vai acontecer em nosso país nas próximas semanas.
Há também um cenário de intermediário para melhor, na qual o número de óbitos não chegaria ao mesmo caso dos Estados Unidos, seria algo em torno de 20 mil óbitos no Brasil, que seria obtido com a adoção de medidas supressivas de maior segurança, por um maior tempo, com um controle melhor. E o melhor cenário seria algo semelhante à Nova Zelândia, Alemanha e Argentina, em que se adota uma medida clara e coordenada, se segura a pressão do empresariado e as medidas conseguem alcançar um impacto maior. Embora seja importante dizer que, nesse último cenário, como as pessoas se protegeram mais, elas continuam suscetíveis, já que não se imunizaram. Então, se vem a segunda onda ou a terceira onda do vírus, pode acontecer uma tragédia, de forma que esses países vão precisar se preparar para momentos de maior flexibilização e de maior controle nos próximos dois ou três anos, e vão ter que ser muito rigorosos no controle das fronteiras, na mobilidade de quem entra e de quem sai do país.
No nosso caso, acho que estamos entre os dois cenários intermediários. O Brasil é muito diverso. Eu falar do Rio Grande do Sul e falar do Amazonas, ou falar da Paraíba e comparar com São Paulo… Vai ter essa diversidade no país. Eu diria, por exemplo, que o Rio Grande do Sul está tendendo para o cenário intermediário para melhor. Mas as pessoas estão afrouxando, estão relaxando, o próprio governo está flexibilizando, e tudo isso faz com que a gente possa acabar migrando para o cenário intermediário para pior. Em Manaus – no Amazonas, na verdade, mas está muito concentrado em Manaus –, no Pará e no Ceará estamos no cenário de intermediário para pior. São Paulo e Rio de Janeiro também estão avançando rapidamente para o cenário de intermediário para pior. Então, eu acho que no Brasil nós teremos uma diversidade de cenários, não será possível dizer “o Brasil está assim”, vamos ter que olhar para diferentes regiões do Brasil e ver como isso vai evoluir.
DMT – Então, teremos cenários distintos no país, acontecendo em momentos diferentes.
Alcides Silva de Miranda – Exato. Agora, o que me preocupa mais é o seguinte. Nós temos um gabinete de crise que, neste momento, deveria estar monitorando não apenas os eventos críticos, ou seja, as pessoas que estão indo aos hospitais, estão se internando nas UTIs ou que, infelizmente, estão morrendo. Isso está sendo monitorado, é o que eu chamo de monitoramento de evento crítico. Mas nós precisaríamos estar monitorando também os chamados eventos sentinela. O que é isso? Nós temos pessoas que estão morrendo em casa, temos pessoas que estão morrendo no interior e que estão sendo registradas como caso de complicação respiratória porque não foi foi feita testagem (para Covid-19), temos trabalhadores da saúde que estão sendo afastados… Nós deveríamos estar monitorando internações por complicações respiratórias, mesmo que sem diagnóstico confirmado, os óbitos familiares, os óbitos por complicação respiratória de modo geral, porque isso nos daria um indicativo de para onde a epidemia está avançando. Ela começa nos bairros ricos das cidades maiores, avança para as periferias, depois migra para as regiões metropolitanas e chega no interior do país – e já está chegando, aliás. Então, um governo bem preparado deveria estar fazendo o monitoramento dos eventos sentinela para fazer análise de tendência, prospecção de cenário e preparar planos de contingência para intervir nos lugares críticos. Mas não quando a coisa piorar: intervir de forma a antecipar as complicações. E o que eu percebo, conversando com algumas pessoas que estão trabalhando junto ao gabinete de crise aqui no Rio Grande do Sul, é que eles não estão monitorando eventos sentinela, os que nos indicam tendências, mas apenas os eventos críticos. Para mim, essa é uma limitação importante, pela qual podemos pagar caro. Porque não vamos ter como nos preparar para intervir rapidamente em lugares onde a situação vai piorar e essas pioras vão se dar de uma forma muito diversa.
Os governos deveriam estar fazendo análise prospectiva, e nós temos tecnologia para isso, temos pessoas preparadas para isso, mas lamentavelmente não está acontecendo. Essas pessoas não estão sendo acionadas pelos governos ou, quando são acionadas, acabam não sendo levadas muito a sério. Vou te dar um exemplo prático. A Universidade Federal de Pelotas fez agora um estudo muito importante de testagem, com mais de 5 mil testes, e o Governo do Estado (do RS) usou o resultado da forma que lhe era mais conveniente. Inclusive o pessoal de Pelotas protestou, porque em nenhum momento eles indicaram flexibilizar a abertura de comércio a partir do levantamento que eles realizaram. Então, os governos chamam os técnicos, ouvem, mas tomam as decisões mais convenientes e não as que estão sendo efetivamente indicadas por esses técnicos.
DMT – Isso também se relaciona com o impacto econômico da pandemia, não é? Afinal, se criou essa suposta oposição entre a emergência de saúde e os problemas econômicos, como se fosse necessário privilegiar um aspecto em detrimento do outro, ou “pegar mais leve” nas medidas de saúde para não causar crise econômica etc. É um elemento que pressiona os governos no momento de tomar decisões. Como o senhor, enquanto especialista em saúde, vê esse suposto conflito?
Alcides Silva de Miranda – É uma falsa dicotomia. Na verdade, é uma dialética: economia depende de gente e gente depende da economia. Vai chegar um momento em que será necessário flexibilizar e essa flexibilização terá que ser inteligente, estratégica. Esse discurso já está sendo feito por governadores. Se estou protegendo as pessoas, se elas estão ficando em casa e não estão tendo contato com o vírus, no momento em que eu flexibilizo elas vão voltar para as ruas e pode vir daí uma segunda onda de epidemia e pegar essas pessoas suscetíveis. Enquanto não tivermos uma vacina eficaz disponível, é provável que tenhamos que alternar momentos, ao longo do ano ou dos próximos dois anos, em que a gente será mais supressivo e em que teremos a oportunidade de flexibilizar. Tudo vai depender do cálculo correto sobre o que fazer em cada momento. Se eu estou, para usar uma linguagem popularizada, com a curva achatada, se a gente conseguiu, por meio de medidas mitigadoras, achatar a curva de contágio, isso significa que a gente está alongando a onda nessa primeira leva de casos, e não é o momento de flexibilizar agora, quando a nossa curva está em uma ascendente. Então, é falsa a discussão entre economia e saúde pública, porque ninguém está esquecendo que a economia é importante, que precisamos da economia para sobreviver. Uma coisa depende da outra.
Agora, o que precisa ser dito é: 40% do orçamento federal no ano passado foi usado para pagar serviços de dívida, agiotagem do mercado financeiro. As operadoras de planos de saúde têm uma dívida bastante significativa com o SUS, de valores de restituição. Só de renúncia fiscal nós temos quase um terço do que o SUS gasta. Então, nós temos recursos aí, no caso da saúde e do governo federal, para criar políticas públicas que deem o mínimo suporte não só para o pessoal que está desempregado, que está brigando para conseguir sacar os R$ 600,00, que é tudo que se fez em termos de política até agora, mas para garantir que os pequenos empresários tenham uma forma intermediária de manter pagamentos de seus funcionários afastados. Nós precisamos de iniciativas de política econômica – e que estão sendo tomadas em outros países, a gente está assistindo os Estados Unidos tomando medidas de suporte econômico, em especial para a microeconomia. A Itália fez isso, vários países europeus estão fazendo, e nós não estamos fazendo isso.
Então, esse discurso (de oposição entre economia e saúde) está servindo para mascarar a falta de iniciativa do governo federal para tomar medidas que sejam compatíveis com esse momento. E aí eles ficam dizendo que as pessoas vão ficar desempregadas, que a economia vai quebrar, um discurso que o (ministro da Economia, Paulo) Guedes faz e que o Bolsonaro faz e que não é nada construtivo, porque não apresenta uma alternativa econômica compatível com esse momento. Daqui a seis meses vamos estar em outro momento, eu espero, que vai pedir um outro tipo de política sanitária e outro tipo de política econômica. Mas é urgente que a gente compatibilize essas duas políticas, de acordo com as necessidades do momento e não ficar explorando essa falsa dicotomia para disfarçar a própria falta de iniciativa.
DMT – E de que modo essa situação tem refletido nos profissionais de saúde, que estão enfrentando o que talvez seja o maior desafio do último século?
Alcides Silva de Miranda – Olha… A principal questão aí se refere à proteção dessas pessoas. E não falo apenas de proteção individual: essas pessoas têm família, é um trabalhador que está se expondo e acaba expondo também os seus familiares, e isso tem gerado um sofrimento psíquico muito grande. Alguns, inclusive, estão optando por conta própria – e eu conheço vários – em irem para hotéis, eles estão voltando do trabalho e pagando diárias de hotel do próprio bolso para não expor a família. É preciso criar suportes para esses trabalhadores, no plural: suporte psicológico, apoio a famílias… Essas políticas não estão sendo feitas. Os equipamentos de proteção individual são imprescindíveis e eles ainda são insuficientes. E quando a gente fala em trabalhadores, não estamos nos referindo apenas aos que estão nas UTIs, na linha de frente do atendimento especializado, mas também daqueles que estão na atenção primária, nos postos de saúde, que estão nos consultórios fazendo outros tipos de atendimento. É uma fase crítica, em que há uma intensividade e um desgaste muito grande desses profissionais.
Há pouco, eu li o ministro Guedes dizendo que o servidor público está em casa, com a geladeira cheia, e que por isso ele vai ter que abrir mão de aumento salarial nos próximos dois anos. É uma insensibilidade impressionante. Esse é o pior momento possível para fazer um comentário imbecil como esse, porque a maior parte dos profissionais em saúde que estão na linha de frente, que estão se expondo, são servidores públicos. É o SUS mostrando a sua importância em um momento crucial. E aí qual é a proposição no sentido de dar suporte a esses trabalhadores? A gente não vê isso, infelizmente. E aí insisto, não é só dizer que está comprando EPIs. Isso é imprescindível, mas muito do material que está sendo comprado é ruim, que não serve, que não tem controle de qualidade. A pressa em comprar tem levado a equívocos e eu vi vários exemplos de materiais inapropriados que foram adquiridos sem critério. Mas, além disso, qual é a estratégia, quais são as propostas de suporte aos profissionais que estejam sendo colocadas em discussão? Lamentavelmente, a gente não vê nada disso.
DMT – E além de prover esse suporte que não está acontecendo, o que mais deveria ser feito para que a atuação do nosso sistema de saúde tenha uma maior capacidade efetiva de enfrentamento ao novo coronavírus? O que, em um cenário ideal, deveria estar sendo feito?
Alcides Silva de Miranda – Acho que a testagem massiva é muito importante, mesmo que a gente saiba que os testes sorológicos têm uma baixa sensibilidade – ou, dito de outro modo, que vai dar muito resultado falso negativo, de a pessoa poder ter o vírus e não aparecer no resultado. Isso dá uma margem de erro grande, mas é melhor trabalhar com essa margem do que não ter nenhuma informação para trabalhar. Começando pelos profissionais de saúde, pelas forças policiais, por esses profissionais que estão se expondo mais diretamente, isso seria importantíssimo. Segundo, acho que deveria haver uma regulação única do fluxo e dos encaminhamentos em caso de internação em UTI, tanto na rede pública quanto na privada. Em São Paulo, agora, nós temos uma comparação entre os bairros nobres e os bairros pobres, e os bairros pobres têm um grande número de casos, mas uma baixa mortalidade, proporcionalmente falando. Enquanto isso, as periferias têm um número equivalente de casos em comparação com as áreas nobres, mas um número de óbitos quatro vezes maior. Então, o que está acontecendo aí? Nós temos duas filas, tem gente indo direto para o Sírio Libanês e tem gente entrando na fila para hospital. Nós precisamos de uma única fila, que seja regulada pelo SUS, e que a distribuição de leitos seja feita de acordo com critérios de risco, de vulnerabilidade e de complicações clínicas. Se for necessário, nós vamos precisar intervir nos leitos privados, que não sejam filiados ao SUS. Isso está no artigo 197 da Constituição, o SUS é de relevância pública. Se não houver leito, se não houver respirador, se não houver profissional para atuar, o Estado tem que intervir na iniciativa privada e fazer o arresto de leitos, fazer a convocação de trabalhadores para dar conta da demanda.
Três: nós precisamos ter, rapidamente, um plano de contingência de leitos de suporte, os chamados hospitais de campanha. E eu chamo atenção para uma coisa: hospital de campanha não é para colocar somente pacientes de Covid-19. Eu posso usar esses hospitais de campanha para manejar os outros casos que continuam acontecendo, porque as pessoas continuam ficando doentes, continuam tendo que se hospitalizar, e no momento em que eu crio uma alternativa de leitos para outro tipo de situação eu também libero leitos para tratamento de Covid-19 em um hospital especializado. E aí precisa de treinamento rápido para esse pessoal que vai trabalhar nesses hospitais de campanha. São Paulo já tomou essa iniciativa, Rio de Janeiro também, alguns outros estados também, e isso é imprescindível. Em quarto lugar, eu acho que tem que melhorar a condução dos gabinetes de crise, passar também a monitorar os eventos sentinela, fazer análise de tendência e prospecção de cenários, como eu mencionei anteriormente. Quinto, e é uma iniciativa que agora está começando a ser tomada, mas que eu acho que deveria ter sido tomada há uns dois meses, pelo menos: a reconversão de parte do nosso parque industrial para produzir rapidamente equipamentos de proteção individual e respiradores. Nós temos indústrias no Brasil que poderiam reconverter muito rapidamente as suas linhas de montagem para produzir esse equipamento que vai ser necessário – e, caso ele não seja utilizado, ele vai poder ser vendido depois, ou seja, não vai haver prejuízo. Então, deveria ser estabelecida uma estratégia clara que nos permita produzir os insumos de que vamos precisar, em especial nas próximas oito a doze semanas.
Por fim, os trabalhadores. Há um contingente de trabalhadores que pode apoiar – não lá na UTI, claro, pois lá há exigência de trabalho especializado. Eu não posso pegar um médico que não está familiarizado, que não sabe entubar, e colocar ele para substituir um intensivista que está cansado ou que ficou doente. Mas é possível que na linha intermediária, onde se faz especialmente as triagens de caso, eu possa treinar rapidamente profissionais para que eles possam ajudar, prestar suporte. Acionar profissionais especialistas da rede privada em um primeiro momento, trazer em um segundo momento profissionais que possam ser treinados rapidamente para atuar nessa linha intermediária, e tudo isso vai dar suporte para os profissionais que, neste momento, estão mais sobrecarregados.
DMT – Por fim, eu queria que o senhor nos falasse um pouco a respeito do novo coronavírus em si. Na sua leitura, o quão rapidamente nosso conhecimento a respeito dele está evoluindo – e aí já faço a ponte para aquela pergunta que está na cabeça de todas as pessoas: o quão perto estamos de um tratamento eficaz, ou mesmo de uma vacina?
Alcides Silva de Miranda – O coronavírus faz parte de uma família de vírus que já era conhecida e que, inclusive, é diferente de outros vírus, como o H1N1. Portanto, as comparações que, por exemplo, o Osmar Terra Plana (referência ao ex-ministro Osmar Terra) tenta fazer entre H1N1 e coronavírus são uma imbecilidade, porque são famílias diferentes. Esse novo tipo de coronavírus que surge muito provavelmente não foi desenvolvido em laboratório, como as pessoas estão dizendo, que foi inventado na China ou nos Estados Unidos: é imensamente mais provável que seja uma mutação espontânea de formas que já conhecíamos. O principal problema é que ele tem uma disseminação muito rápida e se adapta muito rapidamente a novos ambientes. Nossa sorte é que a letalidade dele é baixa – mas, devido a essa alta capacidade de disseminação, acaba matando um número alto de pessoas em um intervalo curto de tempo. E a maneira como ele atua no organismo é um enigma. É uma espécie de loteria imunológica, porque, quanto mais a imunologia da pessoa responde, mais ela vai ter complicações, principalmente porque vai construir microcoágulos que vão se concentrar primeiro nos pulmões e, depois, se espalham pelo corpo.
Está sendo tudo feito meio que às pressas, mas cada estudo revela aspectos novos, que levam a mudanças no manejo clínico nas UTIs e hospitais. Hoje mesmo eu estava lendo uma notícia questionando se, diante de três ou quatro estudos que apontam que o vírus aumenta a coagulação nos doentes, é o caso de aumentar a dose de anticoagulante que se dá normalmente a qualquer paciente que vai para uma UTI. Testes com medicamentos têm sido feitos, mas não há sequer tempo hábil para estudos que afirmem categoricamente que o medicamento tal é eficaz, ou mesmo mais eficaz do que outros, para enfrentar a Covid-19. Está acontecendo o que se verifica em todos os momentos de crise: se intensifica os estudos em busca de uma resposta adequada e, sempre que uma determinada medida se mostra mais eficaz, essa informação se dissemina rapidamente.
A vacina, por exemplo, já está sendo testada, e há previsões de que no começo do próximo ano já vamos ter uma vacina disponível. Normalmente se esperaria três ou quatro anos, mas é provável que no início do ano que vem já estejam sendo testadas essas vacinas e que a massificação se dê rapidamente, mesmo que a eficácia seja baixa, porque é melhor uma eficácia baixa do que eficácia nenhuma. Mas, como a mutação do vírus é muito rápida, é provável que funcione mais ou menos como a vacina da gripe. Ou seja, não será uma dose que você vai tomar e ficar imunizado pelo resto da vida: muito mais provavelmente será uma vacina que vamos precisar tomar a cada ano ou a cada seis meses. Mesmo assim, é bem possível que, nos próximos três ou quatro anos, vá haver um rigor muito maior no controle da mobilidade das pessoas entre os países, com fronteiras muito mais controladas, e é possível que tenhamos fases em que se vai abrir o comércio e, daqui a pouco, tem que fechar em parte ou totalmente, passa algumas semanas e abre de novo… Porque é desse manejo, nos próximos dois ou três anos, que vai depender o controle epidemiológico.
Hoje, por conhecermos muito pouco sobre o vírus e o modo como ele atua, as medidas epidemiológicas são preponderantes com relação às medidas clínicas, que estão atualmente mais direcionadas para as complicações de quem precisou ir ao hospital. São concomitantes, é claro, mas agora as medidas epidemiológicas são mais importantes porque protegem as pessoas suscetíveis. Essas pessoas vão poder ser contaminadas em um momento futuro, mas, nesse meio tempo, vão continuar acontecendo as pesquisas e nós vamos ter tempo de melhorar nosso manejo clínico, o que vai gerar uma taxa de letalidade menor. Hoje, das pessoas que estão sendo encaminhadas para o respirador, infelizmente a maior parte está indo a óbito. Talvez daqui a alguns meses, com as melhorias que estão sendo testadas, a gente consiga melhorar essa proporção referente aos casos extremos.