O complexo industrial para uma economia da Saúde

 

Estudo da Fiocruz propõe articular fortalecimento da saúde coletiva e retomada da indústria brasileira – com o SUS na linha de frente. País pode livrar-se da dependência em fármacos e equipamentos médicos. Só falta a vontade política. Veja a entrevista de Carlos Gadelha, em entrevista a Andréa Vilhena, no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

 

Em meio aos enormes desafios para a saúde e para a economia, evidenciados pela pandemia, um grupo de 35 pesquisadores de dez instituições, coordenado pela Fiocruz, lançou em março os primeiros resultados da pesquisa Desenvolvimento, Saúde e Mudança Estrutural: o Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no contexto da Covid-19, que tem como objetivo pensar políticas para o setor.

 

Por meio de uma parceria firmada com o Centro Internacional Celso Furtado, que dedicou ao tema uma edição inteira da revista Cadernos do Desenvolvimento, a rede de pesquisadores traz a público uma visão da economia do desenvolvimento atualizada com o pensamento sanitarista, que coloca a economia a serviço da saúde e não o inverso.

 

Em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, o coordenador de Ações de Prospecção da Fiocruz e líder do grupo de pesquisa Desenvolvimento e Saúde da Fiocruz, Carlos Grabois Gadelha, aponta que “a pesquisa rompe com a oposição entre economia e a saúde, mostrando que a economia deve ser subordinada ao direito à vida” e que “o bem estar, o SUS e a sustentabilidade ambiental são a nova frente do desenvolvimento para o século XXI, de um desenvolvimento para melhorar a qualidade de vida das pessoas e a sustentabilidade do planeta”.

 

A última edição da revista ‘Cadernos do Desenvolvimento’ foi dedicada ao projeto de pesquisa lançado na Fiocruz, em março deste ano, ’Desenvolvimento, Saúde e Mudança estrutural: Complexo Econômico Industrial 4.0 no contexto da Covid’. No que consiste o projeto?

Estamos discutindo o Complexo Econômico Industrial da Saúde, não apenas uma discussão técnica sobre setores produtivos; no fundo, discutimos a relação do desenvolvimento e saúde e mudança estrutural, por isso, escolhemos o Centro Celso Furtado para a publicação dos resultados. Celso Furtado é o pai do estruturalismo no Brasil. É preciso haver uma mudança estrutural. Não podemos continuar sendo um país que produz soja, extrai minério e derruba árvore e achar que isso gera saúde e desenvolvimento sustentável se houver política compensatória. Por meio da articulação de uma rede de 35 pesquisadores, o projeto busca chamar a atenção para a necessidade de mudança estrutural na relação entre desenvolvimento e saúde. Os artigos da publicação, referentes a 12 estudos, não foram feitos de modo isolado, mas de acordo com uma grande visão de um projeto que é coordenado pela Fiocruz.

 

Essa rede se insere em um projeto mãe, concebido há dois anos, que trata dos desafios do SUS relacionados às grandes transformações econômicas, tecnológicas e sociais do mundo no século XXI.Tal projeto, lançado no início de 2019, nasceu já com uma visão prospectiva, coordenado pela Coordenação de Prospecção da Fiocruz. Desde então, sublinhávamos que o SUS teria os pés de barro e não teria sustentabilidade se não lidasse com o contexto nacional e global de transformações científicas e tecnológicas. Estamos na eradas novas tecnologias de informação, da inteligência artificial, do bigdata, da conectividade sistêmica, que envolve a comunicação e a informação. O subsistema de comunicação e conectividade é a argamassa de todo o Complexo Econômico Industrial da Saúde, ele está por trás das vacinas e dos medicamentos, dos equipamentos e da atenção básica. Não se faz mais atenção básica sem vigilância genômica e vigilância assentada em inteligência artificial e grandes bases de dados. A vigilância preditiva do futuro requer inteligência artificial, dados e, ao mesmo tempo, requer direcionamento para atender às necessidades humanas.

 

Nessa publicação, propomos inclusive uma ampliação da ideia original do complexo econômico industrial que envolvia três subsistemas: o subsistema de base química e biológica, onde está a indústria farmacêutica; o subsistema de base mecânica e eletrônica, onde estão os equipamentos e os materiais médicos; e o subsistema de serviços, onde estão a atenção básica até a atenção de alta complexidade. Agora falamos que existe, ainda, um quarto subsistema de informação e conectividade que invade todos os demais e revoluciona a produção e a inovação em saúde. Se o Brasil não lidar com isso, nós vamos ter um SUS vulnerável e dependente.

 

Ao mesmo tempo, estamos estudando a transformação econômica, a transformação ambiental e a transformação social. Nós integramos todas elas numa macrovisão do desenvolvimento. A pandemia mostrou que, se o Brasil e o mundo não articulam ciência e tecnologia e inovação com os direitos sociais e os direitos ambientais, não vai haver nem direito social nem sustentabilidade ambiental. Sempre cito uma frase da grande Cecília Minayo: “A ciência, a tecnologia e a inovação para o SUS não são a cereja do bolo, são o bolo”. É preciso capacidade de conhecimento, tecnologia e inovação inclusive para baratear as ações de saúde, para introduzir inovações e conhecimentos que sejam mais acessíveis e muitas vezes até mais simples. Não se faz mais atenção básica apenas com soro caseiro. A utilização de big date e de inteligência artificial podem possibilitar, por exemplo, que a ação pública do SUS chegue antes de uma pandemia. Nós não estamos separando esses mundos.

 

Na revista, colocamos o tema do desenvolvimento, da saúde e da mudança estrutural, pensando o Complexo da Saúde 4.0 no contexto da Covid. Sublinhamos que se não houver uma ação forte para ciência, tecnologia e inovação no âmbito do Complexo da Saúde 4.0, ficaremos inexoravelmente afastados da possibilidade de garantir o acesso universal à saúde para a nossa população e para garantir a sustentabilidade ambiental.

 

Estamos dizendo algo muito preciso: para termos SUS, sistema universal, bem estar social e sustentabilidade ambiental, precisamos de uma base de conhecimento, de uma base tecnológica e de uma base econômica que coloque o mundo material e o mundo da economia a serviço da vida e do meio ambiente.

 

Qual o significado da parceria da Fiocruz com o Centro Celso Furtado?

Trata-se do primeiro estudo para pensar o desenvolvimento que uma instituição da área de saúde pública coordena. E o encontro da Fiocruz com o Centro Celso Furtado tem um simbolismo imenso. Lembramos dos primórdios do pensamento sanitarista desenvolvimentista, dos primórdios da saúde pública brasileira e de grandes pensadores como Mário Magalhães, que procurou aproximar a agenda sanitária da agenda do desenvolvimento econômico. Só que isso arrefeceu ao longo do tempo. Esse encontro da Fiocruz com o Centro Celso Furtado é de certa forma disruptivo, porque marca 120 da Fiocruz, ou seja, 120 anos de compromisso com a saúde pública e 100 anos de Celso Furtado, que é o maior pensador brasileiro sobre o desenvolvimento.

 

Promovemos uma dupla ousadia nesse trabalho. Trouxemos o pensamento do desenvolvimento econômico para dentro da saúde coletiva e o pensamento da saúde coletiva e do sistema de saúde para dentro da visão da economia. A gente inverte os termos do debate, mostrando que saúde e economia são dois lados da mesma moeda, ou seja, um projeto nacional de desenvolvimento tem que estar ligado e subordinado à vida, à qualidade de vida e ao acesso universal.

 

Embora o tema da pesquisa esteja inserido no contexto da pandemia, o conceito de Complexo Econômico Industrial da Saúde não é novidade na Fiocruz. Há quanto tempo existe na instituição uma linha de pesquisa dedicada a esse tema?

A raiz desse projeto é a própria história da Fiocruz, desde Oswaldo Cruz, sendo retomada por Sergio Arouca em 1986 durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde. Arouca propunha um diálogo com a área de ciência, tecnologia e inovação, buscando articular o mundo biomédico, as ciências sociais e a saúde coletiva. Ele criou dentro da presidência e dentro da área de planejamento um núcleo de estudos dedicado ao campo da ciência, tecnologia e inovação. Sérgio Arouca foi precursor, sem ele mesmo se dar conta de como estava sendo inovador, em contribuir para derrubar essa barreira entre o mundo da saúde pública e o mundo das ciências biomédicas e da política tecnológica e de inovação.

 

Em seguida, a formulação do conceito do Complexo Econômico Industrial da Saúde foi desenvolvida no âmbito de uma linha de pesquisa que coordenei, especialmente dedicada ao tema na Fiocruz. O primeiro resultado produzido foi um relatório de pesquisa de 2002, por isso essa linha de pesquisa está fazendo vinte anos. Eu e o ex-ministro José Gomes Temporão criamos, também, uma disciplina em 2002, na Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, a respeito do tema. Essa interação de um economista político com um sanitarista esteve na raiz do nascimento dessa visão.

 

O que fizemos desde o ano passado e que deu origem ao atual projeto foi atualizar a agenda histórica da Fiocruz para o contexto das transformações do século XXI, sociais, econômicas e tecnológicas, a denominada quarta revolução tecnológica. Essa agenda está sendo atualizada com um projeto que articula uma rede de pensadores da economia política do desenvolvimento. É uma articulação inédita na Fiocruz e a revista reflete isso. A apresentação é feita pela presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, e por mim, coordenador do projeto. O texto de abertura é do Luiz Gongaza Beluzzo, que é o grande economista para pensar o desenvolvimento do Brasil e a mudança estrutural. O artigo dele aborda de modo muito claro os desafios trazidos pela quarta revolução tecnológica que pode excluir a sociedade dos direitos sociais, do direito ao ambiente e do direito à vida, ou dependendo das políticas nacionais e de sua articulação global pode representar uma chance para que tenhamos um mundo mais sustentável e com melhor qualidade de vida.

 

Essa rede de 35 pesquisadores se propõe a repensar um novo projeto nacional de desenvolvimento que garanta qualidade de vida, bem estar, sustentabilidade ambiental e dinamismo econômico. Refutamos a ideia de que o direito social e a proteção ao meio ambiente são incompatíveis com o dinamismo econômico e o com o crescimento. Ao contrário, consideramos que a nova frente de desenvolvimento e de crescimento é o bem estar e o meio ambiente.O encontro da Fiocruz com essa rede depensadores do desenvolvimento, muitos dos quais não são economistas, marca essa disruptura cognitiva, que rompe a oposição entre economia e vida e sublinha a visão de que a economia deve estar subordinada ao direito à vida.Um dos grandes pilares dessa visão é [John] Keynes, que já em 1930 sublinhava a necessidade de a economia estar a serviço da sociedade. Ele tem uma frase em um artigo que escreveu para os netos (As possibilidades econômicas para nossos netos), que ilustra bem esse pensamento: “A economia tem que estar no banco de trás e ser útil às pessoas como são os dentistas para as pessoas”. Essa é a visão de um economista do desenvolvimento, que defendia o papel de coordenador do Estado e, desde o início do século passado, colocava a economia a serviço da vida e não o inverso.

 

Vamos adiante em nosso projeto, juntando a visão desenvolvida na Fiocruz de que não apenas a economia tem que estar a serviço da vida, mas que a vida, o bem estar e o ambiente gera o desenvolvimento econômico. Queremos ressaltar que, moralmente, a economia deve estar a serviço da vida, do bem estar e do SUS. E, também, que o bem estar, o SUS e a sustentabilidade ambiental são a nova frente do desenvolvimento para o século XXI, de um desenvolvimento que seja digno do nome, um desenvolvimento para melhorar a qualidade de vida das pessoas e a sustentabilidade do planeta. Esse pensamento representa uma ruptura com a visão tão triste e tão atrasada que opõe a economia, à vida e à saúde.

 

Essa visão dialoga com a dos teóricos do desenvolvimento sustentável, segundo a qual o desenvolvimento deve estar calcado em três pilares: a economia, o meio ambiente e, também, o social.

Sim, essa visão é convergente com a do desenvolvimento sustentável, mas propomos uma endogenização do bem estar na economia. Na visão do desenvolvimento sustentável clássico, temos três mundos que precisam dialogar: o mundo da economia, o mundo do bem estar social e o da sustentabilidade ambiental, esses são os três pilares. Nós estamos dizendo um pouco mais, que esses três mundos são interdependentes, que o bem estar e a saúde geram desenvolvimento econômico e geram sustentabilidade ambiental se tiver um padrão tecnológico sustentável, e que a saúde não é só externalidade para o desenvolvimento. Ela não é complementar ao desenvolvimento, a saúde é desenvolvimento. Colocamos a saúde para dentro do econômico, o econômico para dentro do bem estar, ou seja, são ações endógenas. Mostramos que não teremos um padrão de desenvolvimento que não tenha ciência e tecnologia, que não tenha produção nacional e que não gere bem estar social e sustentabilidade. Isso é muito importante no mundo atual.

 

Os países mais desenvolvidos já entenderam isso e a relação estabelecida com a propriedade intelectual deixa isso evidente: é não deixar a periferia, como dizia Celso Furtado, que ainda existe e existe forte, ter acesso à tecnologia e inovação e ter uma produção local. Na verdade, eles nos empurram para a insustentabilidade. Fazem um discurso bonito articulando a dimensão econômica, social e ambiental, mas querem ficar com a dimensão econômica, a competitividade e a base produtiva e de inovação, e apenas nos fornecer políticas assistenciais para o meio ambiente e para as pessoas.

 

Nós nos recusamos a essa divisão internacional do trabalho, seguindo Celso Furtado, e queremos chamar à responsabilidade os países desenvolvidos das grandes empresas para que nos deixem desenvolver, para que não imponham barreiras comerciais como enfrentamos agora com os insumos para vacina, máscaras, ventiladores e anestésicos, para termos acesso a produtos em saúde. O Brasil só produz 5% dos insumos farmacêuticos que consome. Desse jeito, o mundo não gerará sustentabilidade e bem estar social.

 

Estamos avançando em relação à Agenda 2030 com ousadia, a ousadia de Celso Furtado, da Cepal quando pensou a América Latina. Queremos mostrar que não fazemos desenvolvimento sustentável sem termos capacidade científica e tecnológica de produção nacional. Por quê? Qual é o jogo geopolítico atual? Os países mais desenvolvidos concentram a produção, a inovação e a tecnologia e propõem políticas assistenciais de mínimos e não universais para os países da periferia. Isso é inaceitável. Concordamos que as três dimensões do desenvolvimento são integradas, nós somos adeptos do desenvolvimento sustentável, como somos adeptos da globalização, mas uma outra globalização, como diria Milton Santos. Uma globalização e um desenvolvimento sustentável que não gere assimetrias entre os países desenvolvidos e os países que estão na periferia.

 

Não podemos aceitar essa divisão de papéis, que faz com que o conhecimento esteja concentrado apenas em 10 países e 15 empresas. Esse mundo é insustentável, não gerará equidade, não gerará sustentabilidade ambiental. Dialogamos com essa agenda de modo muito positivo, é uma agenda muito bem vinda, mas é uma agenda que envolve decisão política em nível nacional e em nível global. Não nos venham de um lado falar em sustentabilidade e de outro lado nos negar acesso às tecnologias por uma legislação draconiana de propriedade intelectual. Considero a agenda do desenvolvimento sustentável uma bela agenda, mas ela precisa ser aprofundada para reduzir as assimetrias no conhecimento e na produção global.

 

A importância do SUS ficou ainda mais evidente com essa pandemia. De que maneira, nesse cenário de crise sanitária e de crise econômica que o Brasil vive, o investimento no Complexo Industrial da Saúde pode contribuir para o fortalecimento do SUS?

A pandemia trouxe algumas evidências importantes. Ressaltou que é essencial o papel do Estado como coordenador. Mostrou a importância da ação coletiva: cuidamos de todos ou de ninguém. Além disso, sublinhou a centralidade do papel do SUS, sinalizando que fortalecer o complexo econômico industrial da saúde é fortalecer o SUS. Não são coisas diferentes. Ficou evidente que o SUS requer uma base de conhecimento e uma base produtiva nacional e regional. A globalização está nos tirando do mundo da saúde. Estamos sendo excluídos do acesso à saúde pela dinâmica da economia.

 

Esse projeto de pesquisa aponta que se não tivermos um complexo econômico industrial da saúde no Brasil, uma base material e de conhecimento no país, que lhe dê sustentação, não teremos SUS. O papel central do Estado, da ação coletiva, do SUS e de termos o complexo da saúde no Brasil são dimensões interligadas. Sem o complexo não há acesso universal, não tem SUS, não tem sustentabilidade ambiental. Além disso, o projeto ressaltou a importância da ação coletiva e da coordenação do Estado para o SUS e para o desenvolvimento do Complexo.

 

É lamentável que as estruturas de coordenação do Complexo da Saúde tenham vindo desabando, no Brasil, desde 2017, o que fez com que a pandemia nos pegasse sem termos uma capacidade de coordenação do Estado nem para as ações de saúde nem para as ações ligadas ao Complexo da Saúde. A necessidade de fortalecer o SUS é uma marca que essa pandemia nos deixa e a outra é a necessidade do SUS ter uma base econômica, produtiva, de conhecimento e de tecnologia para dar sustentação ao próprio SUS. Isso é algo que fica evidente. Hoje não dá mais para pensar o SUS sem pensar ciência, tecnologia e inovação, e a base produtiva nacional.

 

Nesse período de pandemia, muito se falou do desafio em aumentar o investimento em saúde em um cenário de dificuldade econômica. Como essa questão é abordada nessa publicação?

O grande marco da revista do ponto de vista político é dizer que a saúde, envolvendo o SUS e o Complexo da Saúde, é uma oportunidade para sair da crise. Há áreas em que não se pode parar de investir: atenção básica, atenção especializada, laboratórios de análises de vigilância epidemiológica, e toda a base industrial de vacinas, medicamentos e equipamentos. Nossos resultados de pesquisa, além de evidenciarem o grau de nossa dependência, representada pelo déficit comercial da saúde de 15 milhões de dólares, mostraram que saúde é desenvolvimento. Um terço da pesquisa brasileira está na saúde, 8 milhões de empregos são gerados na saúde, não apenas 6,5 milhões como dizem os dados oficiais. Esse é um dado inovador, porque incluímos nessa conta outros profissionais que estão na saúde, tais como os profissionais da área de comunicação. A saúde não é constituída apenas por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, e auxiliares de enfermagem. A saúde envolve, também, matemáticos que trabalham com inteligência artificial, sociólogos, como a presidente da Fiocruz que coordena a maior instituição de CT&I da América Latina.

 

Avançamos nas metodologias e mostramos que saúde gera investimento, gera ciência e tecnologia, e gera emprego: 8 milhões de empregos diretos e quase 20 milhões de empregos diretos e indiretos. Então o investimento nessa área não é gasto, não é despesa. Investimento em saúde, em ciência tecnologia e inovação no Complexo da Saúde, é uma das saídas mais críticas e cruciais da crise. Mais uma vez invertemos a visão comum e medíocre de que a saúde e o gasto social não estimulam o PIB. Mostramos que a saúde, o gasto social, a ciência e a tecnologia são os novos motores no século XXI.

 

A divisão de papéis entre os países no mundo globalizado, já sublinhada por Celso Furtado, foi atualizada e ficou muito evidente neste período de pandemia, em que, citando suas palavras, Gadelha, “alguns países aparecem como meros consumidores de tecnologia e outros definem o padrão tecnológico”. Como você avalia o lugar do Brasil nessa divisão de papéis na pandemia e o que prospecta para o futuro do país?

A pandemia mostrou a centralidade que tem a produção nacional e o desenvolvimento econômico no campo da saúde. Apenas para citar alguns dados: 95% dos fármacos que o Brasil usa são importados, na área de equipamentos e materiais, ventiladores, se considerarmos os insumos de tecnologia de informação, como softwares e os sensores dos ventiladores, 80% do valor dos ventiladores é importado. Com a pandemia nossa dependênciade importação aumentou ainda mais para alguns produtos como, por exemplo, as máscaras mais sofisticadas, tais como a N95, chegando a mais de 80%. Temos dependência também nas áreas de tecnologias de informação e de inteligência artificial.

 

Os resultados de nossas pesquisam mostram que a inteligência artificial no mundo está concentrada em apenas 10 países. E que, também, 10 países detêm 90% das patentes em saúde. Foi dado o alerta de que o Brasil precisa investir no complexo da saúde como alternativa para o desenvolvimento e para garantir o bem estar. O presidente Macron da França, um liberal, afirmou que não é razoável que um país não tenha os produtos essenciais para cuidar de suas pessoas. A pandemia mostra que isso é possível. Todos os projetos, todas as possibilidades que temos de vacinar a população foram porque a gente pode estabelecer relações virtuosas da Fiocruz e do Butantan com o setor privado.

 

Estamos em um mundo globalizado em que é necessário haver articulação do Estado com o setor privado. Não há nenhum país desenvolvido no mundo que não tenha o setor produtivo forte e o Estado forte. Não ter a necessidade de um Estado forte é mais um mito que existe. É muito importante o papel do Estado direcionando e estimulando o setor privado a produzir o que a população precisa como vacinas, medicamentos e ventiladores. A pandemia mostrou a fragilidade do Brasil, mas mostrou, também, possibilidades.

 

O Brasil é bem sucedido na produção de vacinas e medicamentos para transplantes. O país garante o seu programa de transplante, porque fez parceria do Estado com o setor privado para produzir os medicamentos necessários. São parcerias que a Fiocruz, o Butantan e as instituições públicas participam do conhecimento e do domínio tecnológico. Isso é central de se dizer. Não é terceirização da saúde, ao contrário: é o Estado assumindo a liderança do padrão tecnológico para que este viabilize a universalidade. Exemplos destacados em que o Brasil soube fazer isso: vacinas, testes para diagnóstico para Covid, testes moleculares, toda a parte de transplantes, medicamentos para AIDS, medicamentos para doenças negligenciadas.

 

Graças a uma série de políticas para o desenvolvimento produtivo e para a inovação podemos produzir vacina para gripe no meio da pandemia, assim como produzir vacina para Covid na Fiocruz e no Butantan e firmar parcerias para o desenvolvimento produtivo de biofármicos para câncer. A base tecnológica de biofármicos para doenças crônicas é a base tecnológica onde a Fiocruz vai produzir a vacina para Covid.

 

Se não tivesse história e possibilidades de fazer isso, o Brasil estaria excluído inclusive da perspectiva de nesse ano vacinar sua população para a COVID. Mesmo com todo o atraso e todos os problemas que temos tido, só temos perspectiva porque temos a Fiocruz e o Butantan que tiveram 20 anos, na história recente, de investimentos nas tecnologias, que agora são a sustentação para a vacinas para Covid 19.

 

Como você associa o Complexo Industrial da Saúde à quarta revolução industrial e de que forma as tecnologias contidas nessa revolução 4.0 podem contribuir para o desenvolvimento socioeconômico?

Tratamos nesse projeto de pesquisa da profunda transformação tecnológica em curso. Hoje os grandes conglomerados de informação Google, Microsoft, Amazon, empresas como Dell, Facebook estão entrando no campo da saúde. O campo da saúde está sendo completamente revolucionado. Se não tivermos uma visão de saúde coletiva orientando, a quarta revolução tecnológica ao invés de gerar inclusão gerará exclusão, uma sociedade cheia de robôs e pessoas com expectativa de vida com 20 anos de diferença. Quem for rico terá 20 anos a mais de expectativa de vida. Teremos o subemprego, pessoas vivendo de esmolas ou de rendas assistenciais mínimas.Somos a favor do direito à vida, mas não podemos nos conformar com os mínimos. Propusemos sistemas universais que não são sistemas mínimos, são sistemas do que é necessário.

Quero fazer uma saudação a Wanderley Guilherme dos Santos, que não está no livro, porque faleceu. Ele foi um dos primeiros cientistas políticos a ver que a ciência política e as ciências sociais tinham que se debruçar na quarta revolução tecnológica. Há o risco de aumentar a exclusão, o risco inexorável de não garantirmos o acesso universal à saúde no século XXI, o risco de retrocesso civilizatório do SUS não cumprir o que está na Constituição se a gente não souber domar a fera.

 

Temos que orientar a quarta revolução tecnológica, as tecnologias de big data, inteligência artificial, impressão 3 D, internet das coisas, o campo da informação e conectividade, para colocá-la a serviço das pessoas. Temos um artigo em que abordarmos como a telemedicina e o cuidado remoto podem contribuir para o cuidado humanizado à saúde. Ressaltamos a importância de se estabelecer estratégias de desenvolvimento que articulem a sociedade em torno de um novo projeto, sem o qual a quarta revolução tecnológica gerará mais desigualdade, mais exclusão e mais distância do Brasil e do Complexo da Saúde frente ao mundo desenvolvido

 

Por último, quero destacar o papel do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. O CEE é um lugar único do país para ser o think tank que dialogue com o setor privado, mas seguindo uma filosofia e uma visão púbica de Estado nacional e de interesse social. Não um think tank privado para orientar apenas investimento privado. Com essa visão pública, o CEE pode contribuir na proposição de um projeto de desenvolvimento que articule bem estar, ambiente e desenvolvimento econômico, colocando a economia a serviço da sociedade e a sociedade como uma frente de expansão para gerar desenvolvimento econômico, inovação, emprego e renda. O ambiente e a vida desenvolvem o PIB e não se contrapõe a ele. Essa talvez seja uma das grandes marcas que eu vejo no CEE do futuro também.

 

Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz