Nota sobre o uso da cloroquina / hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19 (Abrasco)
Uma das razões para o impressionante impacto da pandemia da COVID-19 na saúde
mundial é a inexistência, até o presente momento, de vacinas ou antivirais específicos
aprovados para prevenir ou tratar a enfermidade, cuja letalidade real ainda nos é incerta,
pois depende grandemente da disponibilidade de testagem ampla e da qualidade do serviço
de saúde.
Diante das enormes dificuldades para se desenvolver, em período curto, fármacos e
vacinas específicas para tratá-la e preveni-la, a atenção se volta para fármacos já existentes
e com segurança atestada pelo largo uso. Alguns estudos demonstraram que fármacos já
usados para outras doenças têm atividade in vitro contra o SARS-CoV-2, agente etiológico
da Covid-19. Os estudos foram feitos em laboratório em culturas de células (células
genéricas do tipo Vero, obtidas a partir do rim de macacos), em ambiente que não
corresponde ao que ocorre no organismo humano. Isso aconteceu com a cloroquina (CQ)
e a hidroxicloroquina (HCQ), fármacos amplamente utilizados, de baixo custo, com registro
em todos os países, e cujo reposicionamento no uso para outras doenças prescindiria de
estudos iniciais de segurança de fase I, realizado em pessoas sadias1–5.
Maisonasse et al.6 realizaram o primeiro estudo de HCQ para SARS CoV-2, combinada ou
não com azitromicina, em células do trato respiratório e em modelo animal (utilizando
camundongos transgênicos e primatas não humanos). Esses autores confirmaram o efeito
antiviral da HCQ em células genéricas do tipo Vero. Contudo, ao avaliar a ação da HCQ
em células do trato respiratório humano, o mesmo efeito não foi encontrado. Os autores
também testaram a ação do fármaco isolado ou em combinação com azitromicina, em todas
as fases do COVID-19 em animais (fase profilática, fase inicial, fase intermediária, e fase
grave) e não observaram redução da carga viral, dos sintomas nem do comprometimento
pulmonar em nenhum caso, concluindo que testes em humanos com COVID-19 seriam
dispensáveis.
A falta de atividade in vitro da HCQ em células do trato respiratório humano6 é explicada
pela necessidade de receptores específicos para entrada dos vírus na célula. Esses
receptores não são encontrados em células genéricas do tipo Vero, nas quais a atividade
inibitória de HCQ havia inicialmente sido demonstrada. Hoffmann e colaboradores7
confirmaram que a entrada do SARS-CoV2 nas células respiratórias ocorre através de
mecanismo distinto daquele que é inibido pela HCQ.
Inúmeros estudos demostraram que a CQ é capaz de inibir, in vitro, a replicação dos vírus
da raiva, da poliomielite, das hepatites A e C, influenza A e B, enterovírus EV-A71,
Chikungunya (CHIKV), dengue, zika, vírus de Lassa, Hendra e Nipah, da febre hemorrágica
da Crimeia-Congo, vírus Ebola, imunodeficiência humana (HIV), coronavírus da síndrome
respiratória aguda grave (SARS-CoV) e vírus herpes simplex 8–30. Em geral, são
necessárias doses mais elevadas do que as utilizadas para o tratamento da malária,
indicação tradicional para o uso da CQ. No entanto, nenhum estudo in vivo confirmou a
eficácia da CQ para o tratamento de qualquer uma dessas viroses, motivo pelo qual ela
permanece utilizada, com a eficácia e segurança, apenas para o tratamento da malária,
principalmente por Plasmodium vivax, uma das mais importantes espécies causadoras da
doença no homem.
A CQ não impediu a infecção por influenza em ensaios clínicos randomizados31,32 nem
apresentou atividade contra os vírus ebola, CHIKV, influenza e Nipah em modelos
animais8,33–37. Em um modelo de infecção por CHIKV em primatas não-humanos, o
tratamento com CQ agravou a febre, retardou a resposta imune celular e se associou com
depuração viral incompleta37. Um estudo clínico mostrou que o uso de CQ não se associou
à melhora do curso da infeção por CHIKV38, nem à diminuição da frequência de artralgia
crônica após a infecção37. A CQ não é recomendada para o tratamento de pacientes com
infecção pelo HIV39–43.
A CQ apresenta efeito modesto na redução da carga viral de hepatite C, quando associada
a interferon peguilado e 44–46 não sendo um fármaco indicado para o tratamento dessa
infecção.
A HCQ, análogo da CQ, mas com perfil mais favorável de segurança renal e ocular, é
utilizada para o tratamento de doenças autoimunes em função de seu efeito
imunomodulador, tendo se mostrada ativa contra SARS-CoV-2 em experimentos in vitro,
em doses menores que CQ5. Uma revisão sistemática de 86 artigos envolvendo 127
pacientes mostrou equilíbrio de toxicidade cardiológica com os dois fármacos (CQ e HCQ),
embora a toxicidade ocular seja maior em pacientes em uso prolongado de CQ47.
Os estudos com pacientes com COVID-19 utilizando CQ e HCQ são elencados abaixo,
conforme gravidade dos pacientes envolvidos.
Na abordagem clínica das doenças infecciosas, a fase da doença pode influenciar o
resultado da ação e influir na indicação de um agente antimicrobiano. No entanto, não há
razão para se postular a ausência completa da ação em fases mais avançadas, e/ou que
ela seja exclusiva nas fases iniciais e leves de uma doença infecciosa. Seria como não
recomendarmos a administração de antibióticos em pacientes com sepse grave, na UTI.
Em princípio, a ação de um antimicrobiano será tanto melhor quanto menos microrganismos
existirem e, quanto mais imediato for o início do tratamento de uma doença infecciosa,
melhor se espera que seja o resultado.
A questão em debate se refere à ação de CQ/HCQ como antiviral, em que se pretende
diminuir a quantidade de vírus, reduzindo, assim, as complicações graves da evolução da
infecção.
PACIENTES GRAVES COM COVID-19
1. Um primeiro estudo, realizado na China, evoca uma ‘aparente’ eficácia do fosfato de CQ
em pessoas com pneumonia por COVID-19 sem, contudo, apresentar qualquer dado
sobre as características das populações avaliadas (idade, sexo, peso, doenças
anteriores e outros) e a segurança do fármaco (mortalidade, eventos adversos, incluindo
os graves)48. O trabalho é considerado uma evidência anedótica, ou seja, sem força
científica, um relato contado superficialmente pelos autores.
2. Um estudo realizado em Marselha, na França,49 baseou a sua análise do efeito de HCQ
somente na detecção de vírus na secreção respiratória de 42 pacientes. O estudo
descreve a ausência de vírus 5 dias após o início do tratamento no grupo de (6) pacientes
tratados com CQ e azitromicina (57,1% de redução no grupo tratado só com CQ e 12,5%
no controle). No entanto, não foram descritos os desfechos clínicos (se o paciente
continuou hospitalizado, em UTI ou em uso de ventilação mecânica). Os grupos de
pacientes tratados e não-tratados (que incluiu pacientes que recusaram o protocolo!) não
eram comparáveis. Os que receberam a medicação haviam sido tratados no hospital dos
autores e os demais (controles), em outros hospitais. Esse foi o estudo citado, em
coletiva de imprensa, pelo presidente americano Donald Trump, levando ao aumento
expressivo do número de prescrições da medicação para pacientes com COVID-19 nos
EUA e no resto do mundo. Entretanto, devido às inúmeras críticas recebidas50, a própria
revista que havia publicado o artigo, desculpou-se por tê-lo publicado, afirmando que ele
não atingia os padrões técnicos mínimos necessários e prometeu investigar o trabalho.
Entre os problemas, os autores haviam retirado da análise, sem qualquer justificativa, 6
pacientes que haviam recebido HCQ (de um total de 26), três dos quais haviam falecido
e um que havia sido encaminhado para a UTI. Além disso, em nenhum outro estudo
publicado posteriormente, observou-se negativação total do vírus no dia 5 após o uso do
fármaco.
3. Molina et al.51, em Paris, também na França, buscaram, sem sucesso, repetir o estudo
descrito acima. Assim, prospectivamente prescreveram para 11 pacientes hospitalizados
o esquema de HCQ e azitromicina descrito no estudo citado no item 2. Nos primeiros
cinco dias de tratamento, um paciente morreu, dois foram transferidos para a UTI e outro
descontinuou o tratamento no quarto dia devido a um prolongamento do intervalo QT.
Os swabs nasofaríngeos de 8 pacientes foram positivos para SARS-CoV2 nos dias 5 a
6 após o início do tratamento. Assim, embora com um número pequeno de pacientes
avaliados e sem um grupo controle, esses achados são diametralmente opostos aos
descritos pelo grupo de Marselha49, não tendo sido demonstrada ação antiviral ou
benefício clínico do uso da combinação de HCQ e azitromicina.
4. Em outro estudo realizado na China não foi encontrada diferença na taxa de ‘cura
virológica’ (desaparecimento do vírus no sangue ou em secreções), nem nos resultados
clínicos (duração da hospitalização, normalização da temperatura, progressão
radiológica)52.
5. Chorin et al.
53 relataram alterações cardíacas em 84 pacientes hospitalizados com
COVID-19 em tratamento com HCQ e azitromicina. Dado o que se conhece de seus
efeitos colaterais, o maior temor do uso de CQ e HCQ em pacientes com COVID-19 é a
possibilidade de ocorrerem arritmias cardíacas e/ou morte cardíaca súbita.
6. Um estudo prospectivo, realizado em Manaus (Borba et al.
54), foi o primeiro ensaio clínico
randomizado controlado do mundo a utilizar CQ para o tratamento de COVID-19. Nele,
avaliou-se duas doses diferentes de CQ, segundo metodologia bem estabelecida para a
determinação de dose ideal de medicação. O estudo mostrou que a dose mais alta de
CQ (previamente reconhecida como segura em protocolos clínicos para outras
doenças55–57) não deve ser recomendada para o tratamento de pacientes graves com
COVID-19 devido a potenciais riscos à segurança (eventos adversos graves e riscos
cardíacos foram associados à alta mortalidade). O estudo serviu de referência para o
FDA e para o NIH recomendarem que doses mais elevadas não sejam utilizadas em
qualquer situação, incluindo protocolos de pesquisas. Nesse estudo também não se
verificou cura virológica até o quinto dia de tratamento, corroborando o achado de outros
estudos.
7. Geleris et al.
58, em estudo unicamente observacional envolvendo 1446 pacientes com
COVID-19 hospitalizados, mostraram que a administração de HCQ não foi associada à
redução de morte ou de intubação.
8. Rosenberg et al. 59 em um estudo observacional com 1438 pacientes hospitalizados,
mostraram que o tratamento com HCQ, azitromicina ou ambos não foi associado à
mudança significativa na taxa de mortalidade intra-hospitalar. Embora mostre um
desfecho importante, esse estudo, como todo estudo observacional, apresenta
limitações importantes. No entanto, a exemplo do estudo de Geleris et al.
56 suas
conclusões não foram alteradas após ajustes estatísticos para levar em consideração os
potenciais vieses de indicação de tratamento, por se tratar de estudo observacional.
9. Mahévas et al. 60 em estudo observacional envolvendo 181 pacientes, não encontraram
redução na necessidade de internação em UTI, uso de oxigênio ou ventilação invasiva
em pacientes hospitalizados em uso de HCQ. Alguns pacientes em uso de HCQ tiveram
modificações eletrocardiográficas que exigiram a interrupção do tratamento, mesmo com
doses mais baixas da medicação.
PACIENTES NÃO-GRAVES COM COVID-19
1. Estudo clínico randomizado realizado na China com 150 pacientes com casos leves a
moderados de COVID-19, utilizando altas doses e um tratamento prolongado com HCQ
(dose diária de 1200 mg por três dias, seguida de dose de manutenção de 800 mg por
dia durante duas ou três semanas), não mostrou melhor evolução dos pacientes tratados
quando comparado aos não tratados. A frequência de eventos adversos foi maior em
pacientes tratados com HCQ61.
2. Gautret et al.62 realizaram um estudo observacional não comparativo, com 80 pacientes
com infeção leve, tratados com a combinação de HCQ/azitromicina. Os autores
observaram que um dos pacientes faleceu e outro necessitou de transferência para
unidade de terapia intensiva. Os demais apresentaram melhora. O estudo não incluiu
grupo controle, não sendo, portanto, possível apresentar conclusões.
3. Million et al.63 avaliaram prospectivamente o tratamento em fase inicial da doença com
HCQ/azitromicina em 1061 pacientes com COVID-19 observando bons resultados
clínicos e cura virológica. Foi avaliada a negativação virológica em secreções
respiratórias, o que sabidamente ocorre na quase totalidade dos pacientes,
independentemente de tratamento. Resultados clínicos ruins foram observados em 46
pacientes; 8 morreram e 5 ainda estavam internados ao fim do estudo. O estudo não
teve grupo controle ou comparação com controle histórico, e não permite conclusões
satisfatórias sobre a eficácia do tratamento.
USO PROFILÁTICO
1. Um estudo retrospectivo rastreou 14.520 indivíduos em uso contínuo de HCQ para várias
condições, incluindo artritre rematoide, lúpus, gota, doença de Behçet, prevenção de
pericardite e febre familiar do Mediterrâneo. A incidência de infecção por SARS CoV-2
nessa população foi igual à da população geral, indicando que a HCQ não tem ação
profilática 64.
2. Uma pequena série de casos (17 casos) evidenciou que HCQ administrado cronicamente
em pacientes reumáticos não impediu a infecção por SARS-CoV-265, sugerindo ausência
de ação profilática da HCQ.
3. Em outro estudo, realizado com 66 pacientes em uso contínuo de HCQ (em média de
14,2 meses), nenhum desenvolveu sintomas sugestivos de infecção por SARS-CoV-2.
Segundo o próprio autor, o estudo tem limitações, como o pequeno tamanho da amostra,
e a provável ausência de exposição a casos de COVID-19 nos sujeitos entrevistados.
Não há um grupo controle comparativo66.
4. Monti et al. 67 avaliaram o desenvolvimento de COVID-19 em 320 pacientes em uso de
fármacos anti-reumáticos. Quatro pacientes foram casos confirmados de COVID-19 e
outros quatro relataram sintomas altamente sugestivos de COVID-19. Dos 8 pacientes,
5 faziam uso de HCQ. Segundo os autores, os achados não permitem conclusões sobre
a taxa de incidência de infecção por SARS-CoV-2 em pacientes com doenças
reumáticas, nem sobre o impacto clínico do imunocomprometimento na COVID-19. No
entanto, ressaltam os autores, sua experiência preliminar indica que pacientes com
artrite reumatóide crônica não parecem estar sob risco aumentado de complicações
respiratórias ou com maior risco de morrer por SARS-CoV-2.
5. Em outro estudo, 51 de 80 pacientes com lúpus eritematoso sistêmico tiveram COVID19 e a frequência de internação de pacientes com lúpus em uso de HCQ não diferiu da
de não usuários do fármaco68.
Vários artigos encontram-se disponíveis somente em repositórios de preprints. Tais
plataformas se tornaram populares, nos últimos anos, por corresponderem a uma forma de
compartilhar rapidamente dados de uma pesquisa e obter retorno (opiniões, sugestões e
críticas) de cientistas e não cientistas. É importante mencionar que inexiste, nesses casos,
a revisão técnico-científica feita por profissionais especializados no assunto (revisão por
pares) em revistas indexadas. Por essa razão, tais plataformas anunciam claramente nas
suas páginas iniciais:
“Cuidado: Os preprints são relatórios preliminares de trabalho que não foram
certificados pela revisão por pares. Eles não devem ser invocados para orientar a
prática clínica ou comportamento relacionado à saúde e não devem ser relatados
na mídia como informação estabelecida”.
Ou seja, nenhum artigo pré-publicado nessas plataformas deve servir de referência para
recomendar ou não um fármaco, por exemplo. Em uma publicação definitiva em revista
científica, após a revisão pelos pares, indicados pelo editor da revista, os autores precisam
explicar em detalhes os métodos científicos que utilizaram e, se isso não for convincente,
o artigo não é publicado. Revistas do mais alto prestígio e impacto chegam a rejeitar 95%
dos trabalhos que recebem para publicação. Nem sempre um artigo publicado no preprint
consegue passar pelo crivo de outros cientistas que fazem o julgamento criterioso, segundo
normas internacionais centenárias que regem a boa ciência.
Os artigos em preprint, não revisados por pares e disponíveis apenas nos
repositórios específicos, são elencados abaixo por estado de gravidade da doença.
PACIENTES GRAVES COM COVID-19
1. Estudo realizado na China69, em pesquisa randomizada (tratamento escolhido por
‘sorteio’, o que é mais confiável do ponto de vista científico, pois retira a decisão do uso
da medicação do médico, que pode intencional ou inconscientemente tender à escolha
da medicação para pessoas menos graves, para ‘ajudar’ a provar sua hipótese) mostra
o desaparecimento da febre, tosse e melhora da pneumonia em pacientes tratados com
HCQ. O estudo não foi cego, avaliou um número pequeno de pacientes, não determinou
mortalidade e segurança da utilização do medicamento, teve desvios significativos do
protocolo inicial, os fatores de risco para eventos adversos graves foram critério de
exclusão, os desfechos analisados foram subjetivos, e os métodos de análise estatística
questionáveis.
2. Análise realizada por Carlucci et al.70 em estudo observacional prospectivo envolvendo
932 pacientes sugeriu que a adição do sulfato de zinco ao tratamento com HCQ e
azitromicina aumentou a frequência de pacientes recebendo alta, reduziu a necessidade
de ventilação e de admissão em UTI em relação aos que receberam HCQ e azitromicina.
O estudo não possui um grupo comparativo sem HCQ.
3. Huang et al.71, em estudo observacional, avaliaram retrospectivamente 197 pacientes
tratados com CQ e 176 incluídos como controle histórico, sem uso de CQ. O tempo médio
para atingir RNA viral indetectável e a duração da febre foram mais curtos no grupo CQ
do que no grupo de controle histórico.
4. Yu et al.72 avaliaram retrospectivamente 568 pacientes com COVID-19, 48 dos quais
receberam HCQ. O estudo indica redução da mortalidade e de um marcador inflamatório.
Curiosamente, o tempo de permanência do grupo tratado com HCQ no hospital foi duas
vezes maior.
5. Davido et al.73 avaliaram, em estudo retrospectivo envolvendo 132 pacientes, o efeito
da combinação de HCQ e azitromicina em pacientes com COVID-19 hospitalizados.
Observou-se atraso médio de dois dias na transferência para UTI em pacientes que
receberam o tratamento. A metodologia é questionável e com importantes vieses, posto
que os grupos não são equivalentes, sendo o grupo controle constituído por pacientes
submetidos a diferentes tratamentos, incluindo o tratamento com HCQ/azitromicina.
Artigos em preprint, não revisados por pares, em pacientes com a forma leve ou
moderada
PACIENTES NÃO-GRAVES COM COVID-19
1. Estudo brasileiro, com 412 pacientes com sintomas de resfriado comum atendidos por
telemedicina e que receberam HCQ/azitromicina. Outros 224 pacientes recusaram o
tratamento e foram considerados como controles. Nenhum paciente realizou exame para
o diagnóstico de COVID-19. Os dois grupos apresentavam diferenças epidemiológicas
significativas já no início do estudo, não houve análise estatística, o grupo controle foi
composto por indivíduos que recusaram a medicação e problemas éticos de aprovação
do estudo em data posterior ao recrutamento de pacientes resultaram em seu
encerramento 74. Embora não haja declaração de conflitos de interesses, o estudo foi
patrocinado e executado por empresa de Medicina de Grupo em São Paulo, cuja
mortalidade intra-hospitalar por COVID-19 foi muito elevada no início da epidemia. O
estudo circulou apenas em forma de .pdf (e não está disponível nem em repositório de
preprints). Não obstante, a enorme divulgação e grande repercussão que teve mostra
como a cultura social brasileira desconsidera a ciência. A empresa fez o esforço de
construção deste trabalho, nas condições descritas acima, às pressas e, não obstante
tantas e tão gritantes limitações, o estudo alcançou a mídia de forma impactante como
se desse sustento ao uso seguro e eficaz do fármaco.
2. Novales et al.75 sugeriram, em estudo observacional com 166 pacientes, que o
tratamento com HCQ aumentou a sobrevida quando os pacientes foram admitidos nos
estágios iniciais da doença. Os grupos tiveram diferenças significativas no início do
estudo. O grupo que não recebeu tratamento era mais velho e os marcadores
inflamatórios eram mais elevados nos que não usaram HCQ, apontando para um
possível agravamento e potencial maior mortalidade nesse grupo. O estudo ainda não
foi revisado por pares e encontra-se apenas em repositório de preprints.
Com o conjunto de dados apresentados até o presente momento na literatura e em
repositórios de preprints, pode-se tecer algumas considerações. Antes, entretanto, uma
reflexão histórica crítica dos acontecimentos que sucederam ao primeiro relato de ensaio
clínico, se impõe.
O primeiro trabalho em humanos, realizado pelo grupo de Marselha, é de extrema
fragilidade metodológica e científica e pode ser considerado quase um anti-modelo de
desenho de ensaio clínico. Não obstante, uma divulgação intempestiva e sensacionalista
dos dados preliminares reportados no artigo (que tinha como um dos autores o editor da
revista que o aceitou no prazo recorde de um dia) foi feita pelo líder do grupo e pelos
presidentes dos EUA e do Brasil. Isso gerou subprodutos nefastos ao clima de serenidade
e cientificismo que deve embasar qualquer ação médica e sustentar medidas de
enfrentamento de uma epidemia, tanto no nível do comportamento da população quanto
das comunidades médico-científicas. Repertoria-se:
a) a expectativa de parte da mídia e da população de que já existe uma solução
para o risco de infecção para aqueles que, motivados pelo negacionismo oficial,
sentem-se atraídos a desrespeitar regras de quarentenamento e do distanciamento
social;
b) a sensação injustificada de segurança de profissionais de saúde que, inquietos
com a ausência de recursos terapêuticos e ansiosos em ajudar seus pacientes,
assistiram às instituições oficiais liberarem o uso do fármaco, primeiro em ensaios
clínicos, depois para pacientes graves e, finalmente, para todos, mesmo nas fases
iniciais da doença, apesar da ausência de evidências científicas de sua eficácia e
segurança, sem serem devida e suficientemente informados da validade da ação;
c) a dificuldade do desenho de estudos randomizados duplo cegos com grupos
controle placebo (que alguns passaram até a considerar antiéticos em função do
descrito em ‘a’ e ‘b‘), não permitindo a avalição acurada da eficácia e da segurança
do fármaco;
d) a polarização ou ideologização das posturas em relação ao uso de CQ/HCQ em
grupos pro (“de direita”) e contra (“de esquerda”) o seu uso indiscriminado antes
que estudos cientificamente robustos possam afirmar as vantagens ou condenar o
seu uso como recurso terapêutico em definitivo.
Além disso, é preciso ter cuidado com o julgamento clínico individual. Em uma doença nova,
cuja letalidade é ainda incerta, médicos de todo o mundo atendem centenas de pessoas e
usam medicações por compaixão, ou seja, ainda sem evidências. Esses profissionais têm
a melhor das intenções, especialmente porque sabem que não é possível aguardar estudos
clínicos formais para salvar pessoas. À medida que sua experiência aumenta é natural que
melhore a sua capacidade de antever e tratar complicações, observando, então, diminuição
da letalidade entre seus pacientes. Isso, por sua vez, leva muitos profissionais a atribuir a
uma dada ação a responsabilidade pelo sucesso. Isso é comum na história da medicina.
Por exemplo, quando cirurgiões-barbeiros usavam a sangria para tratar várias doenças.
Faziam em todos, e tinham a impressão de que havia melhora, motivo pelo qual a sangria
era feita de forma indiscriminada. Hoje é fácil pensar em outras possibilidades de
tratamento, porque temos ao nosso alcance um grande arsenal de opções. À época, sem
antibióticos, a sangria era uma forma de ação, o que dava ao paciente a sensação de estar
sendo cuidado. Muitos, no entanto, morriam justamente porque precisavam de mais volume
de sangue e, quando esse lhes era extraído, evoluíam para a morte.
No início da pandemia, a incerteza e a ausência de opções justificavam o uso exploratório
de CQ/HCQ. Desde então, surgiram dados in vitro, modelos animais e, mais importante,
inúmeros estudos observacionais, todos com resultados semelhantes. Se no início havia
incerteza e plausibilidade biológica, essas não mais existem. Não há dados in vitro ou em
modelos animais que sugiram que HCQ possa ser eficaz. Nenhum estudo observacional
publicado sugeriu claro benefício. Pelo contrário, vários indicaram potenciais malefícios.
Assim, hoje, em vista de algumas claras certezas, não é mais ético fazer uso rotineiro da
medicação, fora de estudos clínicos. Todas as sociedades profissionais, nacionais e
internacionais, são unânimes em não recomendar o uso de CQ/HCQ para o tratamento de
COVID-19, exceto em pesquisas clínicas aprovadas por comitês de ética e mediante
assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido. Cumpre ressaltar que na
Alemanha, país com a menor letalidade por COVID-19, a HCQ fez parte de forma limitada
de seus protocolos de tratamento. Lá se investiu no aparelhamento tecnológico de suas
UTIs, contando com profissionais altamente qualificados74–76.
Há estudos que comparam a letalidade antes e após a introdução da HCQ na rotina de
tratamento de diferentes Centros. Essa é uma análise falaciosa, pois desconsidera a curva
de aprendizado da equipe de saúde. Profissionais mais treinados fornecem melhores
cuidados aos seus pacientes. Por exemplo, no Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo,
a letalidade diminuiu após a retirada da HCQ da rotina de tratamento. Por outro lado,
Manaus, cidade em que o Conselho Regional de Medicina do Amazonas recomendou o
uso de HCQ nas fases iniciais da doença desde o início da epidemia, é a capital que
acumula mais mortes proporcionais por COVID-19 em todo o Brasil.
Esses dados, em seu conjunto, devem nos levar a refletir sobre a ausência de impacto da
HCQ no enfrentamento da epidemia. Medidas como intervenção oportuna, posição de
pronação do paciente, uso de oxigênio suplementar sob ventilação não-invasiva, uso
oportuno de anticoagulantes, corticosteroides e de antibioticoterapia são o grande
diferencial na abordagem terapêutica desses pacientes de COVID-19. Tudo isso foi graças
à intensa troca de informações entre especialistas do mundo inteiro, uma lenta, porém
frutífera curva de aprendizado coletivo que permitiu que a letalidade da Covid-19 seja hoje
muito menor do que no início da epidemia, quando nada se sabia sobre a dinâmica da
doença.
Como conclusões parciais, cabe, entretanto, já salientar que:
• Não há evidências científicas favoráveis que sustentem o uso de CQ/HCQ em qualquer
dose ou estádio da COVID-19, quer no nível individual quer no de políticas públicas;
• por outro lado, há estudos que demonstram que o uso de CQ/HCQ para o tratamento de
Covid-19 pode estar associado à maior frequência de eventos adversos graves e com
maior letalidade;
• o uso de CQ/HCQ deve ser restrito a protocolos de pesquisa aprovados por comitês de
ética em pesquisa;
Antes de abordar as duas últimas conclusões desta nota, transcrevemos (de forma
adaptada), trecho extraído do “COVID-19: Manifesto do Colegiado dos Professores
Titulares da Faculdade de Medicina da USP” publicado no site da FMUSP, em 17/04/2020.
“Outro ponto do juramento médico é o de consolar sempre. Muitas vezes,
medicamentos ou outras ações não medicamentosas, apesar de não trazerem
benefício comprovado, podem significar aos pacientes, sensação de alívio do
sofrimento. Esse é o momento em que a ciência nos deixa, para que a arte se
imponha. Trata-se de momento sublime da relação médico-paciente. Momento
íntimo, onde a privacidade é fundamenta…
Ao contrário do que se apregoa, as nossas convicções sólidas em princípios
científicos não implicam contraposição às ações espirituais. Nesse momento,
manifestamos nossa compaixão, e nossos mais profundos sentimentos, aos
familiares dos mais de mil brasileiros mortos (à época). Ao mesmo tempo,
compartilhamos esperança com aqueles que estão em sofrimento nas enfermarias
e terapias intensivas, para que consigam superar esta fase e que se recuperem.
Que todas as crenças unam suas preces. Dentro dos princípios de apoio mútuo a
todos que sofrem, seja nos hospitais ou nos isolamentos em domicílio”.
• o uso da CQ/HCQ deve ter o consentimento formal do paciente ou de seu responsável
legal;
• por óbvio, a prescrição de um tratamento sem comprovação científica de eficácia, mas
com demonstração de risco de efeitos colaterais graves, poderá fazer com que o
prescritor incorra em dano a preceitos legais ou éticos.
A discussão em torno do uso, no Brasil, de um fármaco não recomendado para COVID-19
por todas as sociedades científicas internacionais nos tem levado a vivenciar o epicentro
da doença, em escala mundial, impossibilitando a discussão necessária que devem ter os
poderes federal, estadual e municipal. A aparente saída de dois ministros da saúde por
conta do imbróglio, em meio à crise, tem atrasado processos de compra, ordenamento de
despesas, diálogo com CONASS e CONASEMS, fortalecimento do SUS e planejamento
concreto da economia do país.
É preciso igualmente que se avaliem os conflitos de interesse ligados a essa recomendação
quase que impositiva. Empresas que produzem HCQ têm tido alto retorno financeiro, em
tempos de carestia econômica para vários setores da economia. Sem uma clara separação
entre benefício real para a população e benefícios exclusivos do setor produtivo do fármaco,
o debate encontra forte viés, que merece investigação por parte das autoridades.
Não se deve opor, em meio ao desespero da população, à prescrição de substâncias com
efeito placebo, ou seja, que fazem um paciente se sentir bem, mesmo sem qualquer ação
farmacêutica comprovada, como é o caso de vitaminas, o gás ozônio ou, mesmo, a
homeopatia. Mas quando a substância que se pretende utilizar com essa finalidade está
fortemente associada a eventos adversos graves e conhecidos, especialmente na
população-alvo da COVID-19, mais idosa, em sua maioria com cardiopatias, e portanto
mais sujeita a arritmias fatais, cabe ao médico, amparado pela ciência, advertir e lutar para
que não tenhamos mais mortes iatrogênicas desnecessárias. O vírus está autorizado a
matar, por sua natureza não regida pela justiça dos homens, mas não o médico, ainda que
pretensamente agindo em boa fé.
As conclusões dos estudos internacionais, multicêntricos e randomizados ora em
curso, com previsão de divulgação para algumas semanas, são as únicas garantias
de oferta de tratamentos seguros e eficazes a pacientes com COVID-19. Qualquer
tentativa de substituir os resultados dessas pesquisas por análises de estudos
observacionais é uma falsa solução, que pode acarretar elevados riscos, incluindo
morte, aos pacientes, por efeitos colaterais conhecidos e previsíveis.
Em uma situação de emergência global de saúde pública, como a Pandemia causada
pelo SARS-CoV-2, cabe ao Poder Público garantir o bem-estar da população de forma
responsável e embasada em conhecimento produzido pela ciência e não a submeter
ao risco adicional de um tratamento sem garantias de segurança e eficácia sob a
chancela de uma política nacional de saúde.
Participaram da elaboração desta Nota (por ordem alfabética)
Celso Ferreira Ramos Filho1,2
Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro1,3
Daniel Goldberg Tabak1
Djane Clarys Baia-da-Silva4
José Gomes Temporão1,5
Marcus Vinícius Guimarães Lacerda4
Margareth Pretti Dalcolmo6
Mauro Schechter2
Natália Pasternak Taschner7
Patrícia Brasil8
1 Academia Nacional de Medicina
2 Faculdade de Medicina, UFRJ
3 Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz
4 Fundação de Medicina Tropical do Amazonas Doutor Heitor Vieira Dourado e
Universidade do Estado do Amazonas
5 Centro de Estudos Estratégicos, Fiocruz
6 Centro de Referência Hélio Fraga, ENSP, Fiocruz
7 Instituto Questão de Ciência e Instituto de Ciências Biomédicas, USP
8 Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, Fiocruz
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