Trabalho, amor e (de)colonialidade na relação de emprego

Queremos para o Direito do Trabalho – e para nós – um destino radicalmente oposto ao que se desenha na contemporaneidade.

Flávia Souza Máximo Pereira

“Meu corpo não é seu campo de batalha
Como você ousa colocar sua mão
onde eu não dei permissão?”

Mohja Kahf (tradução nossa)

Trabalho e amor: na minha opinião, esta é uma combinação intrigante. O amor é um sentimento permitido quando performamos o nosso trabalho? Quando penso em amor, é inevitável pensar em liberdade. Liberdade para escolher. Liberdade para sentir. Liberdade para pensar. Liberdade para respirarmos nestes tempos sufocantes. Essa liberdade é o que nos torna humanos. E nos torna diferentes da carne animalesca.

Em teoria, essa liberdade deveria ser garantida pelo Direito do Trabalho. Este ramo jurídico surge na modernidade como uma revolução na autonomia da vontade, porque conseguiu tornar inteligível a assimetria da liberdade humana. E nos mostrou como essa assimetria se manifesta na concretude da carne. Assimetria que deve ser compensada pela construção jurídica da relação de emprego. Para que esses corpos que trabalham pudessem ser materialmente livres. Para que esses corpos que trabalham pudessem ser humanos.

Em oposição ao modelo escravocrata e servil, o coração do Direito do Trabalho é constituído pela liberdade, que pulsa na relação de emprego. O empregado vende sua força de trabalho –  e não o seu corpo – sob o poder diretivo do empregador. Nesta combinação paradoxal de trabalho livre e subordinado.

No entanto, o quão livre é este corpo? É possível separar a força de trabalho do corpo do trabalhador? Há liberdade de escolha neste trabalho? Há amor neste trabalho? Quem ama, fala a verdade. Então, escute. Muitas vezes, nós, pesquisadoras e pesquisadores, nos recusamos a ver que o Direito do Trabalho também está centrado na sujeição dos corpos, sob o verniz da subordinação jurídica, que sempre sustentou o sistema capitalista moderno/colonial.

O Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2020 nos informa que 61% das/os trabalhadoras/es do mundo são informais. A maioria da classe trabalhadora não está protegida na relação de emprego. Tais dados também demonstram que desigualdades históricas de gênero e de raça permanecem neste mundo do trabalho. E que nas últimas décadas, a desigualdade de renda entre trabalhadoras/es do Sul e do Norte aumentou. Consequentemente, é esperado que corpos que trabalham e que, mesmo assim, vivem na miséria, aumentem nos próximos anos.

Segundo dados de 2020 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a relação de emprego no Brasil é majoritariamente ocupada por homens brancos. Dos 8 milhões de pessoas que perderam o emprego durante a pandemia, entre o 1º e o 2º trimestre de 2020, 6,3 milhões eram negros e negras, o equivalente a 71% do total. Entre o 4º trimestre de 2019 e o 2º de 2020, cerca de 72% ou 8,1 milhões de negros e negras estavam em situação vulnerável no país.

Não queremos aqui negligenciar a importante conquista da relação de emprego, como fazem os tacanhos discursos neoliberais de austeridade, exemplificados pela Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/17) e pela Reforma da Previdência (Emenda Constitucional n. 103/19). Discursos que insistem em minar a relação de emprego protegido, com teses falaciosas. Que inserem o trabalho digno como um obstáculo para o crescimento econômico. Sabemos que estas são mentiras camufladas por gráficos e números, que lhes dão a aparência de conhecimento científico mimetizado na linguagem racionalista da modernidade.

A relação de emprego é  inegavelmente uma conquista imensa da classe trabalhadora que merece ser celebrada e defendida. Mas sem messianismo. E com crítica. E quando criticamos aqui o Direito do Trabalho, apontando a colonialidade jurídica da relação de emprego, também o estamos defendendo. Com afeto. Com amor. Apesar de todas as suas contradições. Porque queremos para o Direito do Trabalho – e para nós – um destino radicalmente oposto ao que se desenha na contemporaneidade. Porque a simples destruição do emprego protegido, como vem acontecendo, nada mais é do que um aprofundamento da colonialidade, do racismo, do sexismo, da LGBTfobia, do capacitismo. Os corpos violados por esses processos interseccionais de opressão são os que sofrerão primeiro os efeitos da precariedade no trabalho.

Mas quem ama, fala a verdade. Então, escute. A sujeição concreta dos corpos proporcionada pela colonialidade jurídica no Direito do Trabalho tem que ser denunciada. Por meio da subordinação legal, o Direito do Trabalho forja a existência da liberdade para alguns dos corpos que trabalham. E isso também significa que essa sujeição concreta é mais violenta para alguns corpos do que para outros nesse sistema capitalista moderno/colonial.

O Direito do Trabalho brasileiro importou a teoria eurocêntrica, reproduzindo o paralelo temporal do trabalho escravocrata e servil, para exaltar o vínculo empregatício como uma conquista da liberdade na modernidade. Uma conquista para todas/os as/os trabalhadoras/es. Para todos os humanos. Porque todas/os devemos ter o direito de escolher. O direito de sentir. O direito de pensar. O direito de respirar. O direito de amar.

No entanto, na colonização da América Latina, as formas de trabalho não surgiram de uma sequência histórica, que culminou na conquista da liberdade. Servidão, escravidão e trabalho livre eram exercidos juntos. E eles foram combinados com a ideia de raça fenotípica. Associada à cor da pele. E ao gênero. Para dar legitimidade às relações de dominação entre colonizador e colonizado. Para naturalizar funções inferiores na divisão racial e sexual do trabalho. Para classificar quem é humano e quem é anti-humano. Para determinar quem não tem direito de escolha. Quem não tem direito de sentir. Não tem direito de pensar. Não tem direito de respirar. Quem não tem direito de amar. Porque elas e eles são apenas carne animalesca.

Apenas homens brancos europeus podiam performar trabalho livre. Isso significa que na colonização da América Latina houve uma associação exclusiva da branquitude masculina com o trabalho livre. Eles eram o padrão para o ser humano. E isso permanece até hoje. Porque o trabalho livre/subordinado, que representa o cerne da proteção do Direito do Trabalho, foi e ainda é uma construção jurídica baseada em um único tipo de trabalhador. O único que é considerado humano. Portanto, o único que merece a ilusão da liberdade no capitalismo criada pela subordinação jurídica. O único que tem autonomia da vontade. E que tem algum direito de sentir. Direito de pensar. Direito de respirar. Direito de amar.

Quem ama, fala a verdade. Então, escute. Há uma colonialidade jurídica no Direito do Trabalho: nós, do Sul, reproduzimos a teoria eurocêntrica do Direito do Trabalho, em que o humano no trabalho se constitui a partir de uma base antinegra, anti-indígena, antifeminina e capacistista imposta pelo colonizador. Essa construção jurídica universalista da liberdade é representada pela relação de emprego, mas se apresenta por meio de uma neutralidade fictícia que equaliza as desigualdades. E ainda hoje é esse discurso eurocêntrico criado por para o homem branco que define quem é o sujeito epistêmico no Direito do Trabalho. Que naturaliza e legitima a divisão sexual-racial do trabalho no mundo e na América Latina, por meio do próprio Direito do Trabalho.

Esta é a minha pesquisa. Esse é meu trabalho. Que faz parte de mim. Que faz parte do meu corpo. Da minha subjetividade. Do meu afeto. Isso é amor? Trabalho e amor: na minha opinião, esta é uma combinação intrigante. Essa sensação é permitida quando eu estou performando o meu trabalho? Porque para ter direito de amar, para ser considerada trabalhadora, eu tenho que, em primeiro lugar, ser considerada humana.

E eu não sou um ser humano?

Eu sou considerada uma mulher do Sul branca e rica. A segunda parte desta frase me faz ser considerada um ser humano. Que tem o direito de amar. E a sociedade brasileira me faz pensar que sou digna de ser amada. Esses privilégios fizeram de mim uma jovem professora. Tive a liberdade de escolher o meu trabalho.

Eu trabalho em uma universidade federal de uma cidade chamada “Ouro Preto”, que também se refere ao valor da carne preta na colonização brasileira. Todos os dias, ando por esta cidade histórica, construída por corpos negros, para entrar em uma sala de aula cheia de corpos brancos. Essa gentrificação racial se reflete em um racismo epistêmico em meu próprio trabalho acadêmico: enquanto pessoas lidas como brancos/as – como eu – produzem a teoria do Direito do Trabalho, espera-se que a periferia negra, – especialmente as mulheres – proporcionem estudos de caso: elas são o “objeto” de pesquisa. Um objeto que não tem direito de escolha. Não tem direito de sentir. Não tem direito de pensar. Não tem direito de respirar. Não tem direito de amar.

O legado colonial de desumanização das mulheres negras no trabalho continuou nestes tempos de pandemia na minha universidade. Elas são obrigadas a realizar atividades laborais precárias. Não são professoras, não são advogadas, não são a maioria das minhas alunas, apesar de serem a maioria da população. As que puderam ser minhas alunas foram excluídas novamente na pandemia. Porque elas não tiveram acesso à internet de qualidade. Não puderam estudar em casa. Elas não têm espaço. Elas não têm tempo. Elas têm que trabalhar. Sem direito de escolha. Sem direito de sentir. Sem direito de pensar. Sem direito de respirar. Sem direito de amar.

Porque ela é obrigada a se ignorar. Porque todo o resto é uma prioridade em detrimento de si. Ela não tem o privilégio de ser cuidada. Não tem o privilégio de se amar. E a sociedade brasileira a faz pensar que ela não é digna de ser amada. Porque ela é uma mulher negra pobre do Sul, não uma humana. Este é o seu trabalho ontológico.

E ela não é humana?

Eu sou considerada uma mulher do Sul branca e rica. A primeira parte desta frase não me torna um ser humano completo. Nesta realidade pandêmica, eu – e todas as minhas colegas pesquisadoras – trabalhamos mais, melhor, sem direito à desconexão, mas sou menos reconhecida que meus colegas homens brancos. Porque sou uma mulher do Sul, não uma humana. Este é o meu trabalho ontológico.

Nesta realidade pandêmica, eu – todas as minhas colegas pesquisadoras – estamos exaustas de realizar trabalho reprodutivo gratuito. O que me faz sentir longe do amor. Faz-me sentir raiva. Com raiva de mim mesma. Por ser professora de Direito do Trabalho e não conseguir parar de pensar na sua insuficiência epistêmica. Insuficiência quanto ao conceito jurídico de tempo. De valor. Do ambiente de trabalho. De ensino. De aprendizagem. Do ser humano.

Quem ama, fala a verdade. Então, escute-me. Quando estou aqui criticando o Direito do Trabalho, estou defendendo-o também. Com afeto. Com amor. Apesar de todas as suas contradições. Porque o que eu quero para o Direito do Trabalho – e para nós – é liberdade. Para poder escolher. Sentir. Pensar. Para respirar nestes tempos sufocantes. O direito de amar o que fazemos.

Referências

ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. O direito do trabalho na filosofia e na teoria social crítica. São Paulo: LTr, 2014.

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/la frontera: the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute, 1987.

DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Boletim Especial: Desigualdade entre negros e brancos se aprofunda durante a pandemia. 2020. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2020/boletimEspecial03.html Acesso em 10 mar. 2022.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. Revista TB. Rio de Janeiro, n. 92/93 (jan/jun), 1988.

ILO. World Employment and Social Outlook: Trends 2020. International Labour Office. Geneva: 2020.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad do poder, eurocentrismo e América Latina. In LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

TRUTH, Sojourner. E eu não sou uma mulher? 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/ Acesso em 10 fev. 2022.

Flávia Souza Máximo Pereira épProfessora Adjunta de Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora em Direito do Trabalho em Cotutela entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Università degli Studi di Roma – Tor Vergata. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Ressaber – Estudos em Saberes Decoloniais (UFOP). Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFOP. Pesquisadora da rede Democratizing Work.

Fonte:https://www.dmtemdebate.com.br/trabalho-amor-e-decolonialidade-na-relacao-de-emprego/